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O problema
Sabemos que mulheres e pessoas não binárias são afetadas pelo sexismo e pelo binarismo na linguagem. No caso das mulheres, imperam as referências genéricas e coletivas que tendem a apagar a presença feminina, privilegiando o viés masculino. No caso das pessoas não binárias, o problema é ainda mais delicado. Pois diz respeito também à comunicação individual, fazendo com que enfrentem diariamente os constrangimentos proporcionados por uma linguagem essencialmente cisgênera. Por isso muitas pessoas que não se reconhecem dentro do espectro da binariedade têm reivindicado o gênero neutro na linguagem falada e escrita como forma de reconhecimento de suas identidades.
O tema tem causado sucessivas polêmicas nas redes sociais, especialmente agora, durante a pandemia, quando a tendência à polarização tem se acentuado ainda mais. Entre as alas conservadora e bolsonarista, a rejeição à pauta não é novidade. Mas a resistência vem ocorrendo também dentro das comunidades LGBT+, na militância de esquerda e entre as alas mais progressistas da sociedade.
Os argumentos são variados. Mas apresentam características similares. Dentro do movimento LGBT+, onde o debate tem feições mais complexas, a rejeição à comunidade trans não binária de um lado, e o discurso de que existem causas mais importantes para evitar que pessoas trans continuem morrendo no Brasil por outro, são as respostas mais comuns. Para a militância de esquerda e progressistas, o argumento da hierarquia de pautas é o mais citado. A partir dele, inúmeros outros são irradiados, a maioria com tom irônico e pejorativo. Em suma, a resistência ao tema passa por dois caminhos:
- Um argumentativo, que sugere, de formas variadas, uma hierarquia de pautas, na qual o combate ao sexismo na comunicação e, sobretudo, o reconhecimento das identidades trans não binárias não são prioridade.
- Outro pautado exclusivamente pelo preconceito. E que não carece de argumentação.
Linguagem e cultura estão, sempre, conectadas. Sendo a sociedade regida por valores e práticas sexistas e normativas, não é de se estranhar que nossa comunicação venha falhando no que diz respeito à inclusão. A resistência em mudar hábitos tão profundos que envolvem a língua falada e escrita não pode ser tomada como algo natural. Ela é parte de um conjunto de ações mais ou menos coordenadas de manutenção dos privilégios da cisgeneridade, pautadas pelo preconceito e pela exclusão.
Nós, na Diva, acreditamos que a transformação social vem do cruzamento das pautas, da luta simultânea, que aponta para uma direção comum, sem deixar de ouvir cada voz do coro social, exercitando a empatia para acolher a dor des outres.
O projeto
Neste cenário, nós da Diva criamos o Diva Todes, um projeto dedicado ao desenvolvimento de ferramentas para o combate ao sexismo e ao binarismo na linguagem. O intuito é criar um conjunto de soluções que atendam:
- pessoas interessadas em utilizar uma gramática inclusiva, não binária e não sexista, que têm dificuldade em encontrar um referencial confiável.
- organizações interessadas em DE&I, em geral despreparadas para agirem dentro da agenda formulada a partir das demandas populares, cometendo gafes que mais prejudicam as ações voltadas à diversidade do que geram engajamento.
- entidades e instituições capazes de propagar um debate saudável sobre o tema entre crianças, jovens e adultos, de forma que seja progressivamente compreendido em sua complexidade, como uma causa relevante e necessária.
Muitas tentativas de solução vêm sendo elaboradas e utilizadas. Desde sistemas restritos à linguagem escrita (todxs, tod@s etc.), excluindo pessoas cegas, com dislexia e baixa visão, até propostas paliativas e excludentes, focadas apenas no combate ao sexismo e na comunicação genérica, ignorando a necessidade de pessoas não binárias.
O Diva Todes tem a ambição de superar tais desafios. Seja criando um conjunto de soluções que respeite a complexidade do problema, seja incluindo todes ês stakeholders envolvides. Das pessoas afetadas pelo sexismo e pela binariedade na linguagem (mulheres e pessoas não binárias), até pessoas, organizações e entidades carentes de ações educacionais e sistemas confiáveis de informação sobre o assunto.
A coordenação do projeto está nas mãos de Duda Téo, sócie da Diva e pessoa trans não binária. Ativista das causas LGBT+, Duda tem ouvido e estimulado que toda a equipe ouça as demandas da comunidade não binária. Só assim ampliaremos nosso senso de empatia e evitaremos a criação de soluções vazias, provenientes mais da imaginação dos seus criadores que do diálogo com as pessoas envolvidas.
Atualmente estamos dando os primeiros passos para que o projeto saia do papel. Estamos estruturando uma equipe de trabalho (necessariamente diversa), finalizando uma pesquisa quantitativa sobre o assunto, negociando uma parceria acadêmica para balizar o processo, e buscando parcerias e financiamento. Estes são passos fundamentais do nosso modelo de atuação.
- A diversidade dos times de desenvolvimento é fundamental. Acreditamos que a representatividade, além de aumentar o potencial inovador, só faz sentido quando existe do começo ao fim, da criação ao consumo.
- Nossas soluções são sempre pautadas por longos e detalhados processos investigativos. Desde pesquisas desk, mapeando o que já foi dito ou feito sobre o assunto, até pesquisas quanti, identificando concepções, interesses, preconceitos, dúvidas e dificuldades dos públicos envolvidos. Também são realizadas pesquisas primárias, estabelecendo um corpo a corpo com ês protagonistas do problema investigado.
- A aproximação com a academia é uma prática que procuramos incorporar. Acreditamos que a universidade é o celeiro de ideias mais avançadas sobre DE&I e que o mercado precisa de soluções nessa área chanceladas pela academia. Estamos desenhando modelos de atuação conjunta que ainda precisam ser testados e aprovados. A equipe do projeto Diva Todes já vem negociando uma parceria com o departamento de linguagem aplicada de uma renomada universidade pública. Aguardemos.
- Nossos projetos dependem da busca por financiamento. No momento estamos negociando algumas possibilidades. As parcerias funcionam através de um modelo de participação que estimula o engajamento das empresas. Parte do nosso trabalho na criação de soluções inclusivas é conectar marcas e comunidades através de ações colaborativas. Nós agenciamos essa relação em busca de criar vínculos duradouros e transformadores. Cada ação é pensada de forma que surta impacto nas comunidades focais e se integre aos programas de DE&I das organizações parceiras, bem como ao seu discurso na comunicação com seus públicos.
O que os dados nos contam
Nossa equipe colocou no ar faz algumas semanas um formulário de pesquisa quantitativa destinado a levantar indícios sobre a percepção pública de um tema que tem causado tanto debate nas redes nos últimos meses – o uso da linguagem neutra. A pesquisa segue disponível para resposta aqui. Mas alguns dados já gritam na multidão. E contam histórias interessantes.
Entre os cerca de 600 respondentes até o momento, a grande maioria identificou-se como branca, cisgênera e heterosexual, em sua maioria mulheres. Um dado que, inicialmente, nos causou certa frustração. Pagamos anúncios segmentados, divulgamos em instituições representantes das comunidades minorizadas de interesse, investimos no boca a boca. Mas a discrepância seguiu praticamente a mesma. Demorou para entendermos que essa presença massiva entre ês respondentes de pessoas em situação de privilégio era, em si, um dado importante.
Em primeiro lugar, percebemos que qualquer ação ou solução deveria 1. estudar estratégias de distribuição mais elaboradas e 2. extrapolar o universo on line, chegando a parcelas mais diversas da população. Percebemos também que nossas redes, apesar da ênfase em DE&I, vêm sendo consumidas essencialmente por tais segmentos. Algo que não é de todo ruim, tendo em vista a importância do reconhecimento de privilégios no processo de mudança social, o que torna essa ampla gama de pessoas um alvo importante de quaisquer soluções voltadas à DE&I.
O cruzamento dos dados informativos com respostas mais específicas sobre a relevância do tema mostrou que, mesmo entre os segmentos mais privilegiados, o interesse em uma comunicação mais inclusiva é massivo. Com esse filtro, conseguimos enxergar de fato a história que os dados estavam querendo contar.
Apesar do interesse de uma parcela da sociedade em adotar o uso da linguagem inclusiva não binária (LINB), faltam informações sistematizadas e ferramentas que facilitem o seu acesso e aprendizado. Embora mais de 80% des respondentes saibam o que é linguagem neutra e um número parecido (76,8%) já tenha utilizado algum sistema, a maioria desconhece as regras de uso ou manuais confiáveis de consulta sobre o tema.
No que diz respeito às soluções, ês respondentes se dividiram quando questionados sobre qual seria a melhor fonte de consulta sobre o tema. Nas justificativas, foram dezenas de respostas argumentando sobre a necessidade de combinar diversos meios na proposta de solução, de forma que diferentes públicos e situações sejam contemplados.
As demandas identificadas em todas as nossas pesquisas apontam para um cenário plural de consumo de informação sobre o tema. Plural no que diz respeito aos meios, plataformas ou formatos. Plural em termos de público, perfil e necessidades.
Estamos trabalhando, nesse sentido, com um combo de entregas destinadas a sanar demandas diversas. Tanto práticas, focadas no uso cotidiano da linguagem neutra, especialmente pela via escrita; quanto educacionais, pensando na necessidade urgente de ampliar as discussões sobre gênero, com especial atenção às relações entre linguagem, sexismo e binariedade. Aguardem!
Limites da pesquisa
É importante ressaltar que os dados aqui levantados não pretendem dar conta da complexa realidade nacional no que diz respeito ao tema da linguagem neutra. Apresentamos algumas percepções dominantes numa amostragem específica. Além da pesquisa quanti, realizamos pesquisa desk e primária, conversando e acessando depoimentos diversos sobre o tema.
Desta forma, os números e os caminhos de solução aqui apresentados não se reduzem ao interesse da parcela majoritariamente privilegiada entre os respondentes do questionário. Não significa, portanto, que vamos criar soluções restritas às suas demandas apenas. Significa que muito provavelmente teremos o apoio dessa parcela no consumo, divulgação e defesa da causa. Mas as soluções serão desenvolvidas com o protagonismo de mulheres e pessoas trans, binárias e não binárias, em acordo com suas dores e necessidades.
A diversidade não pode ser a embalagem. Ela precisa ser uma experiência real, presente do início ao fim na jornada de uma organização. Quer conversar mais sobre o assunto? Ou apadrinhar o Diva Todes? Entre em contato com a gente.
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Break the bubble.
Diva. United by difference.
Marcelo Téo é co-fundador da Diva Inclusive Solutions, pesquisador, educador, produtor de conteúdo, músico e pai. Suas pesquisas dentro e fora do âmbito acadêmico estão voltadas para o consumo narrativo e o papel da diversidade de histórias no desenvolvimento da empatia.