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Vivemos numa sociedade da escassez, que pode ser definida por um sistema que reproduz desigualdade, que exclui ao formatar o mundo a partir de padrões que privilegiam alguns corpos em detrimento de outros, alguns desejos em detrimento de outros. Nesse mundo de escassez, existem pessoas com deficiência. A deficiência, que não é sinônimo de ineficiência, não as define, no sentido de que não resume suas identidades.
Segundo a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (ONU, 2006), a deficiência é resultante da combinação entre dois fatores: os impedimentos clínicos que estão nas pessoas (que podem ser físicos, intelectuais, sensoriais etc.) e as barreiras que estão ao seu redor (na arquitetura, nos meios de transporte, na comunicação e, acima de tudo, na nossa atitude).
O maior problema está, muitas vezes, na percepção deficiente de pessoas “sem deficiência” que, carentes de experiências diversas das suas, encontram grande dificuldade em aceitar, conviver, acolher e ajudar a projetar um mundo para pessoas com deficiência.
A maior minoria do planeta
As pessoas com deficiência representam 15% da população mundial, cerca de um bilhão de habitantes, conforme divulgado pela OMS, no Relatório Mundial sobre a Deficiência. Trata-se da maior “minoria do planeta”.
A desigualdade vivida por elas (como analfabetismo, desemprego, baixa renda entre outras) não impacta apenas on indivíduos ou suas famílias, mas também os indicadores de desenvolvimento que medem a (in)eficácia dos sistemas vigentes.
No Brasil, o resultado obtido no Censo IBGE 2010 foi de 23,9%, aproximadamente 45 milhões de pessoas com deficiência. Esse grupo diverso e numeroso sofre com incontáveis barreiras que dificultam seu acesso a oportunidades que deveriam ser para todes, mas que, da forma como são desenhadas, priorizam grupos privilegiados. Apesar dos avanços nas últimas décadas, o atual governo federal tem “trabalhado” para retirar direitos conquistados a duras penas pela comunidade de PCD.
Acessibilidade não é gentileza
As pessoas com deficiência sofrem diversas restrições e são marginalizadas na sociedade cotidianamente. Sofrem não necessariamente com as limitações funcionais do corpo ou do intelecto, mas sobretudo com o tratamento que recebem da sociedade.
Séculos de exclusão nos fizeram acreditar que existem corpos-modelos que devem ser privilegiados. Mas a verdade é que o mundo é pra todes. E a deficiência é uma desvantagem causada, sobretudo, pela organização social. Um prédio, uma cidade, um conteúdo, uma plataforma digital, uma solução tecnológica, ou seja, qualquer produção humana feita sem pensar em diversidade de corpos e culturas dificulta ou exclui a participação de certos grupos ou comunidades.
A presença e o protagonismo de pessoas com deficiência (PCD) em organizações responsáveis por entregar produtos ou serviços de amplo acesso à sociedade é fundamental. Só assim conseguiremos construir as cidades do futuro com inclusão. Uma cidade inteligente é, mais do que um polo de novas tecnologias com gestão automatizada, uma cidade preparada para acolher a todes.
Uma sociedade que vê na deficiência um fardo e que segue projetando o acesso à vida a partir de modelos únicos de humanidade seguirá pobre em sua essência. A acessibilidade não é uma gentileza feita a pessoas com alguma deficiência, mas uma oportunidade para, além de democratizar o acesso, enriquecer nossas instituições com o antídoto da empatia. Além disso, pessoas com deficiência consomem e pagam impostos como todes nós. No entanto, seguem sem acesso a serviços disponíveis à maioria das pessoas.
Você já se perguntou se o mundo que você ajuda a construir é acessível? Para todes? As deficiências são parte da diversidade humana. E o mundo é pra todes.
Pessoas com deficiência são diversas, assim como suas necessidades
Internacionalmente, a divisão clínica mais adotada compreende a deficiência física, sensorial (auditiva e visual) e intelectual.
No Brasil, foram inseridos na deficiência física o nanismo e a ostomia (orifício aberto para permitir a excreção de fezes e de urina ou traqueostomia para apoio respiratório). Também as pessoas com transtorno do espectro autista estão reconhecidas como pessoas com deficiência para todos os fins das políticas públicas.
Na legislação brasileira, os diferentes tipos de deficiência estão categorizados no Decreto nº 5.296/2004 como: deficiência física, auditiva, visual, mental (atualmente intelectual, função cognitiva) e múltipla, que é a associação de mais de um tipo de deficiência.
Cada grupo têm necessidades distintas. E cada indivíduo passa por dificuldades específicas. A acessibilidade, nesse sentido, deve ser pensada em diversas camadas. Da arquitetura urbana à dimensão sensorial e intelectual dos produtos e serviços oferecidos à sociedade como um todo. E sempre com a participação das pessoas que sofrem com o problema.
A diversidade é uma grande espiral. Não podemos reduzir o conceito a um grupo de comunidades minorizadas, pois dentro de cada uma delas, existem corpos, experiências e necessidades distintas. Na comunidade de pessoas com deficiência não é diferente. São diversas as necessidades, as capacidades e talentos.
A acessibilidade é um desafio contínuo
Muitas vezes, apesar do interesse na acessibilidade, não sabemos por onde começar. Nem quando ela é necessária. Conheça os principais campos e desafios da acessibilidade e entenda como ela está em você e no mundo ao redor.
O desafio da acessibilidade arquitetônica está presente na estrutura urbana, na arquitetura pública e privada, onde são incontáveis as barreiras físicas que impedem ou dificultam o acesso de pessoas com deficiência.
O desafio da acessibilidade metodológica está presente nas instituições de ensino e nas organizações onde a troca e a construção de conhecimento acontecem. Sem metodologias dedicadas a eliminar barreiras sensoriais e intelectuais do processo de ensino, não há acessibilidade.
O desafio da acessibilidade programática está presente na construção de políticas públicas. Sem leis, decretos e portarias criados com o objetivo de fazer avançar os direitos humanos em todos os seus âmbitos, muitos serviços de utilidade pública se tornam inacessíveis à parte da população.
O desafio da acessibilidade instrumental está presente nos instrumentos, ferramentas e utensílios disponibilizados nos âmbitos escolar, profissional e recreativo.
O desafio da acessibilidade nos transportes está presente nos veículos, nos pontos de paradas, terminais e estações do transporte público, nas calçadas, e na preparação dos profissionais que atuam no setor (especialmente em tempos de uberização).
O desafio da acessibilidade nas comunicações está presente em todas as instâncias da comunicação, seja interpessoal, escrita ou virtual.
O desafio da acessibilidade digital está presente tanto no acesso físico de equipamentos ou softwares, quanto na apresentação dos conteúdos, questão ainda carente de soluções no âmbito legislativo e de interesse no âmbito individual.
Por fim, o desafio da acessibilidade atitudinal está presente nas atitudes individuais e coletivas, permeadas por preconceitos e estereótipos, exercendo formas variadas de discriminação. Todos os demais tipos de acessibilidade se relacionam a essa dimensão, pois são as atitudes e a falta de empatia que freiam a construção de um mundo acessível para todes.
“Nada sem nós, sobre nós”
Nenhuma lei ou política pública, produto ou serviço, edificação ou equipamento, estratégia ou benefício, pode ser elaborada sem a participação de pessoas com deficiência, especialmente quando se referem a elas, mas não apenas nestas situações. Todo produto ou serviço precisa ser pensado para além de modelos únicos de corporalidade, intelectualidade e acesso a oportunidades. Esse processo de adaptação (a acessibilidade) é trabalhoso, mas sempre promissor e rico, sobretudo quando inclui pessoas com deficiência no seu curso criativo e produtivo.
A sua participação será plena quando ocorrer em todas as etapas do processo de geração de resultados: a elaboração, o refinamento, a implementação, o monitoramento, a avaliação e o contínuo aperfeiçoamento.
O capacitismo é uma furada. Você sabe por quê?
Existem diversas formas de preconceito. E capacitismo é o nome dado ao preconceito que tem como base a “capacidade” de outros seres humanos. Afeta, portanto, a parcela da população que possui algum tipo de deficiência.
Uma sociedade capacitista é aquela que enxerga uma pessoa com deficiência como uma pessoa menos eficiente ou incapaz, tendo, portanto, menor valor. A crença no capacitismo se espalha quando há ausência de representatividade. Quando se ouve falar sem ter a chance de conhecer. A oportunidade de viver, trabalhar, desenvolver afetos e ouvir pessoas que possuem algum tipo de deficiência é o melhor antídoto para a falácia do capacitismo.
Como toda forma de preconceito, o capacitismo é parte de um sistema e se manifesta de forma sutil em nossas ações cotidianas. Você pode ser um crítico mordaz do capacitismo e do sistema que ele representa, e ainda assim portar-se como um capacitista no contato com pessoas com deficiência.
A deficiência pode impor sérias restrições, mas ela também é parte de um processo de descoberta da potência que mora em cada um. Apoiar a causa de pessoas com deficiência é, acima de tudo, humanizá-las, reconhecendo que suas subjetividades e potencialidades estão muito além da deficiência.
O capacitismo impede que pessoas com deficiência exerçam sua plena capacidade, definindo-as pelo que supostamente lhes torna incapazes. Mas a verdade é que nós, humanos, somos seres extremamente adaptáveis. Por isso somos capazes de transformar alterações biológicas em potência. Um sentido deficiente empodera outros com novas habilidades. E assim sobrevivemos.
O capacitismo não é um problema exclusivo das organizações. É, sobretudo, das pessoas. A falta de empatia e o preconceito tiram o desejo de conhecer, de entender e de acolher, invisibilizando as pessoas por trás da deficiência.
Não seja parte desse ciclo tóxico. Diga não ao capacitismo.
Dica de leitura: DI MARCO, Vitor. Capacitismo: o mito da capacidade. Belo Horizonte: Letramento Editorial e Livraria, 2020.
Cripface
Você sabia que a maioria dos personagens com deficiência que você vê na TV são interpretados por atores que não vivem as mesmas deficiências na vida real? Conhecida por “cripface”, a prática nega oportunidades para as próprias pessoas com deficiência contarem suas narrativas, além de transmitir um retrato muitas vezes estereotipado e superficial de suas histórias.
Segundo estudo promovido pela Ruderman Family Foundation, uma organização dedicada ao ativismo em prol das causas das pessoas com deficiência, apenas 5% des personagens com deficiência são interpretados por PCDs.
Muito embora as discussões sobre diversidade tenham crescido vertiginosamente nos campos cinematográfico e publicitário, a inclusão de atories e outros profissionais com deficiência é muito mais escassa se comparada com a de profissionais negros ou LGBT, ficando à frente apenas dos povos indígenas, sem dúvida a comunidade menos presente nas narrativas do cinema e da publicidade.
Há uma tendência das grandes plataformas e do mercado cinematográfico como um todo de contar histórias mais diversas, com personagens mais plurais. Mas as tomadas de decisão na hora de contratar ainda são majoritariamente pautadas pelo racismo, pelo sexismo e pelo capacitismo. É comum que histórias de pessoas com deficiência sejam interpretadas em sua maioria por atories sem deficiência. O mesmo acontece com histórias dentro da comunidade LGBT+ ou que envolvem personagens indígenas, por exemplo.
Essas ações apontam para uma concepção parcial e distorcida de inclusão, que chamamos aqui na Diva de “diversidade como cartão postal”. Não bastam narrativas sobre PCDs. Queremos profissionais PCDs tendo a chance de mostrar seus talentos e sua autenticidade ao falar dos desafios e belezas de sua comunidade.
Direitos ameaçados: retrocessos da política brasileira
O momento é ambíguo. Florescimento e crise da diversidade. A sociedade fala mais sobre o assunto. Mas o governo federal vem, com frequência acelerada, atacando os direitos de comunidades minorizadas. A grande comunidade das pessoas com deficiência (a maior minoria do país) vem sofrendo ataques sucessivos. Já não bastasse a falta de representatividade, a exclusão, a sistemática falta de acessibilidade, a reduzida compreensão da enorme gama de deficiências que afetam quase um quarto da população brasileira, agora precisa lidar com ataques de um governo abertamente capacitista.
Para entendermos melhor o debate, é importante lembrar que, em 1991, a Lei 8.213 obrigou as empresas que tivessem acima de 100 funcionários, adotassem cotas para a contratação de pessoas com deficiência. Os padrões a serem seguidos foram: 2% para empresas com 100 a 200 colaboradores, 3% para organizações que tivessem entre 201 a 500, 4% para empresas entre 501 a 1000 e 5% para empresas com ou mais de 1001 funcionários.
Apesar da sua homologação em 1991, ela só passou a valer em 2000, quando a fiscalização do seu cumprimento passou a vigorar. Mesmo com a lei e a fiscalização em vigor, muitas empresas optam por pagar multa, pois consideram mais barato isso do que fazer todas as adaptações e contratações, ignorando os benefícios de uma comunidade interna diversa e o compromisso ético que, em tese, deveriam assumir.
Em 2019, o Projeto de Lei 6.159 entrou no Congresso para votação em regime de urgência.
Os principais impactos do projeto estão diretamente ligados à questão da empregabilidade das pessoas com deficiência, propondo um dispositivo de cumprimento alternativo para a Lei de Cotas, o qual representa um grande retrocesso às conquistas da lei de 1991. A sociedade civil e o próprio Ministério Público se posicionaram contra o Projeto de Lei, que se baseia numa concepção equivocada e capacitista acerca das pessoas com deficiência.
Fique atento. E na dúvida, ouça a opinião de quem sofre com o problema. Lembre-se: “Nada sem nós, sobre nós”.
Educação, infância e deficiência
Em tempos de pandemia, muito tem se falado sobre o ambiente escolar. O dilema da volta às aulas, os formatos de interação on line, a importância do papel des professories etc. Mas pouco se fala de um problema há muito naturalizado, que é a falta de preparo da maioria das instituições de ensino para acolher crianças, jovens e adultos com deficiência.
Segundo o IBGE, dos cerca de 47 milhões de pessoas com deficiência no Brasil, quase 16 milhões são crianças. E um dos grandes desafios para as famílias destas crianças é a vida escolar. Apesar da Lei 13.146/2015 assegurar que toda criança tenha o direito à educação, nem todas as escolas estão preparadas e adequadas para receber essas crianças.
Em 1994, a Declaração de Salamanca determinou que toda criança com deficiência tivesse acesso à educação. A escola deveria, então, proporcionar um modelo pedagógico capaz de satisfazer as suas necessidades de aprendizagem.
Contudo, ainda são comuns casos de pessoas com deficiência física tratadas na escola como se tivessem deficiência cognitiva, limitando seu acesso a um programa comum às outras crianças. Estes problemas podem se agravar ainda mais com o decreto 10.502 do atual governo federal, que desobriga as escolas regulares a matricularem alunes com deficiência.
No momento crítico pelo qual passamos, sem incentivos estatais, o papel de fiscalizar e exigir que sejam cumpridos os direitos das crianças com deficiência recai sobre a família. Mas todo mundo pode e deve cobrar.
O papel da escola é, acima de tudo, educar para a diversidade. Para tanto, é fundamental que sejam criados estímulos à convivência. E não reforços à segregação.
Lembre-se que ¼ da população possui algum tipo de deficiência. Conviver com a diferença talvez seja o aprendizado mais poderoso de sues filhes na escola. Por uma escola para todes. Tome parte dessa luta.
Interseccionalidade: uma coisa não exclui a outra
A interseccionalidade é, hoje, mais do que um conceito, mas uma ferramenta de intervenção política, apropriada pelos movimentos sociais, pelo ativismo para reivindicar direitos e enfrentar a desigualdade. Representa, portanto, um tema importante para entender a complexidade de alguns debates na atualidade.
É comum que se coloquem grupos bastante diversos sob um único rótulo identitário, muitas vezes sem respeitar as diferenças e singularidades que marcam os indivíduos. Existem diferenças entre ser um homem negro e uma mulher negra, entre ser uma pessoa com deficiência e uma pessoa trans com deficiência, entre ser LGBT+ de classe média branque e ser LGBT+ periférique negre. As dissonâncias dizem respeito, nesses casos, ao acúmulo de marcadores de opressão que pesam sobre determinados indivíduos, exigindo uma percepção mais complexa – porque interseccional – acerca de suas existências.
O termo interseccionalidade nos permite compreender melhor as sobreposições que as muitas desigualdades promovem na vida das pessoas.
É uma ferramenta que nos provoca a pensar sobre as relações sociais a partir de diferentes marcadores de opressão: deficiência, classe, gênero, raça, idade, etc.
Diante de tantas desigualdades, temos que considerar que na maioria das vezes, esses marcadores de opressão não vêm isolados e podem ser cumulativos. Ao percebê-los de forma interseccional, podemos compreender melhor os dramas individuais, bem como suas construções plurais, dinâmicas e interdependentes.
Por mais que as desigualdades sejam distintas e mereçam ações e classificações diferentes, não podemos desconsiderar que uma pessoa com deficiência pode acumular outras diferenças discriminatórias. Uma pessoa deficiente pode ser, ainda, mulher, negra, pobre, migrante, idosa, transgênera, tudo ao mesmo tempo.
Abaixo as caixinhas identitárias. Abaixo as bolhas alienantes. As lutas identitárias só têm a ganhar a partir de um olhar interseccional, pois os desafios nascem da mesma fonte. Somos todes um encontro de múltiplas experiências.
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Break the bubble.
Diva. United by difference.
Marcelo Téo é co-fundador da Diva Inclusive Solutions, pesquisador, educador, produtor de conteúdo, músico e pai. Suas pesquisas dentro e fora do âmbito acadêmico estão voltadas para o consumo narrativo e o papel da diversidade de histórias no desenvolvimento da empatia.