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Zygmunt Bauman, o famoso sociólogo polonês falecido em 2017, tornou-se mundialmente conhecido ao cunhar o conceito de “relações líquidas”, tema sobre o qual publicou uma sequência de livros. Confesso que prefiro ler e refletir a partir da ótica de David Harvey sobre estas questões, mas de modo algum desmereço ou desconsidero as análises sólidas (este termo pode até soar como um trocadilho irônico, quando aplicado a um pensador que dissecou tão bem a dinâmica líquida e volátil do mundo), do polonês. Bauman é cirúrgico e formidável, mesmo que para muitos (e inclusive pra mim nos meus primeiros contatos com as suas ideias), ele pareça um pessimista e cause certo desconforto.
Em uma entrevista em 2016, quando lançava o seu último livro (Babel – Entre a Incerteza e a Esperança), Bauman trouxe novamente para o centro dos debates o famoso desconforto, algo que direta ou indiretamente, sempre esteve presente em suas obras.
A pós-modernidade tem o poder de implantar a dinâmica do desconforto inato nas pessoas. O mundo globalizado e a lógica das relações (sejam elas econômicas ou pessoais) são estruturadas para isso e o impacto se dá inclusive no modelo político que tanto defendemos: a democracia.
O abandono que os Estados desde os anos 1990 (orientados pela política Reagan e Thatcher) tem estabelecido para a maioria de suas populações, só tem intensificado as incertezas e tormentos por conta dos sentimentos de inadequação pessoal que a cada dia que passa, torna-se cada vez mais uma regra. Anthony Giddens nomeia isso de “sensação de desencaixe” , enfim… Independente de qual seja a sua preferência autoral dentro desta temática, a maioria das discussões críticas sobre estas questões conduzirão a reflexões muito parecidas.
Sendo assim, considerando este mundo onde cada pessoa é colocada como responsável pelos seus próprios resultados (um erro crasso e vexatório se pensarmos o que é o ser humano em sua jornada histórica), eu gostaria de falar sobre este desconforto e refletir especificamente sobre a sua situação relacionada a nossa condição de pessoas privilegiadas.
Quando os debates sobre diversidade, equidade e inclusão ganham territórios que antes não abriam suas portas para isso, o desconforto grita alto. Dentro de nossas casas, dos templos religiosos, escolas, governos, forças armadas, organizações do terceiro setor e é claro, pequenas empresas e as poderosas corporações. Algum privilégio sempre estará à flor da pele e se manifestará de maneira rude ou ardilosa, inconsciente ou estrategicamente pensada, para tentar manter a pessoas ou determinado grupo em sua zona de conforto e privilégio. Pode ser para garantir privilégios de gênero, raça, classe, geracional, condição física ou seja lá qual outro privilégio possamos identificar.
Quero falar sobre o desconforto que nos fez resilientes e obstinados. O desconforto que sempre movimentou a humanidade e que forja a história. Por qual motivo insisto no desconforto? Acredito que esta seja uma pergunta que esteja rondando a cabeça de muitas pessoas neste momento e pensando nela, respondo. Insisto nele, pois esta é a única alternativa aceitável, se pensamos em melhorias (seja ela individual ou para a sociedade). É o desconforto que sempre nos movimentou. É ele que nos faz refletir, buscar alternativas, que nos torna inventivos, dinâmicos e que nos leva a sermos melhores.
Foi o desconforto, que de acordo com Charles Darwin, fez os primeiros hominídeos descerem de suas árvores em busca de melhores condições de vida, tornando-os eretos e possibilitando que eles tomassem todo o planeta de assalto. Foi também o desconforto que na Antiguidade, levou Édipo a deixar a sua família de criação, e seguir em direção ao seu destino trágico, mas transformador. Semelhante desconforto existencial, também levou Eva a provar do “fruto proibido” por questionar as regras arbitrariamente instituídas. E foi este mesmo desconforto que impulsionou Yagan, integrante do povo Noongar, a enfrentar até o seu assassinato, o Império Colonial Britânico na Austrália.
O desconforto diante do silêncio e da falta de respostas, levou Ogum a cometer um erro que o transformou em um ser mais cauteloso e protetor dos mais fracos. Proteção esta, que Túpak Amaru dedicou ao seu povo até o dia de sua execução. Foi o desconforto que alimentou a resistência do líder Inca contra os espanhóis, e de Maria Felipa contra os portugueses na Bahia do Brasil Colonial. Desconforto similar moveu Nelson Mandela em sua luta contra o apartheid e forjou sua resistência, em mais de 27 anos de prisão na África do Sul.
Desconforto igual levou Malcolm X a se ressignificar quando retornou de Meca e a desafiar seus próprios mentores, sem se incomodar com o fim trágico que o aguardava. E foi este mesmo desconforto que fez a Rosa Parks em 1955, recusar-se a levantar para um homem branco se sentar em seu lugar, no fundo daquele ônibus em Montgomery. Desconforto em mesma intensidade impulsionou Zumbi e Dandara a liderarem uma nação diversa chamada Palmares, e nela ambos lutaram e resistiram contra a opressão dos usurpadores europeus, até o fim de suas vidas.
E foi este mesmo desconforto multifacetado, que também me conduziu a produzir este desconfortante texto. Diante de tantos desconfortos pedagógicos, não vejo outra opção a não ser aceitar o desconforto como algo edificante. Ele pode doer individualmente, algumas outras vezes, incomodar socialmente, mas no final das contas, é ele quem promove mudanças, transformações e avanços.
Por este motivo, deixo aqui um apelo. Quando forem questionades sobre seus privilégios, peço que aceitem o desconforto, que entendam que as falas que lhes são proferidas, não se dirigem diretamente com a intencionalidade de atacar ou lhes magoar. Elas possuem outro destino: o sistema (ou o “CIStema”, como costumamos denominar aqui na DIVA), a estrutura.
A mensagem que diretamente devem entender como sendo dirigidas a vocês, é o pedido para que se movam dentro de seus universos, para que modifiquem hábitos pessoais nocivos e que estão ao alcance da mudança de vocês. Para que questionem a estrutura que lhes envolve, e para que transformem aquilo e aquelas que estão ao seu redor.
Não se preocupem com a transformação do macro. Olhem para dentro e promovam a sua própria transformação. O macro acontece quando o micro se movimenta. Permitam-se viver no desconforto buscando um mundo melhor e mais justo, assim como nós propomos todos os dias aqui na DIVA, pois entendemos que esse desconforto pode ser compreendido como um contraponto necessário para que seja possível atingirmos um outro patamar civilizatório, já que para mim em particular, o desconforto, é a única alternativa aceitável.
Divagando é uma coluna voltada a criar pontes entre o cotidiano e o universo corporativo, criando diálogos e suscitando reflexões.
Viny Belizario é sócio da Diva Inclusive Solutions, pesquisador, educador, formador de gestores, analista comportamental, psicanalista em formação e consultor em diversidade, equidade e inclusão há quase 20 anos. Raça, gênero, psicologia e pedagogia corporativa são suas áreas de pesquisa e interesse, onde apoia suas práticas para a transformação da cultura organizacional.