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PAPAI, VOCÊ É MACHISTA: DA ESCUTA PATRIARCAL AO DESPERTAR DO OUVIDO

PAPAI, VOCÊ É MACHISTA: DA ESCUTA PATRIARCAL AO DESPERTAR DO OUVIDO

Por Marcelo Téo

TEMPO DE LEITURA: 13 MINUTOS

A admiração é um sentimento bonito. É uma entrega intelectual e sensorial à contemplação de outra pessoa. E isso é vital para construirmos relações pautadas pela confiança. Mas esse sentimento é também uma construção cultural. Nós aprendemos, ao longo da vida, o que é digno de admiração e o que não é. E numa sociedade patriarcal, nós, homens, somos ensinados a admirar outros homens. É o chamado pacto da masculinidade. “Não chore como uma menininha”. “Você está parecendo uma mulher histérica”. “Seja homem e assuma a sua responsabilidade”. Como se não fossem os homens quem, ao longo de sucessivas gerações, abandonam seus filhos para serem criados pelas mães.

Esse pacto tem consequências sérias, sobretudo para as mulheridades, mas não só. E nós, homens, não vamos mudar isso esperando que figuras femininas excepcionais ganhem o nosso respeito. Nós precisamos desaprender. Pau Klee, um pintor famoso e disruptivo da arte abstrata, estudou o desenho de crianças e de pessoas dadas como loucas para desaprender os vícios da arte acadêmica. Gauguin, antes dele, foi estudar a arte de povos originários com o mesmo objetivo. A ideia era tentar controlar os reflexos desenvolvidos ao longo de uma trajetória de educação artística nas academias de belas artes para criar algo novo, que eles entendiam como necessário para renovar a linguagem das artes em acordo com as necessidades de uma nova era. 

O exemplo desses e muitos outros artistas que quiseram revolucionar a forma de fazer arte na virada para o século passado parece distante, mas serve como uma luva para a nossa realidade. Eu vou dar um exemplo bem banal que eu vivi, como homem branco, cisgênero, heterossexual e músico que gosta de rock. Esse último detalhe parece fora de lugar, mas vocês já vão entender melhor. Tenho duas filhas, Luna de 7 anos, e Mel de 4. Uma noite dessas eu lia para elas a “História do rock para pequenos”. E Luna perguntou pq tinha tão poucas meninas no livro. “Pai, eu tô aprendendo piano. E tem mais meninas que, como eu, gostam de música, certo?”. “Certo filha”. “Então por que elas não tão aqui?”. Na hora olhei o nome do autor: uma mulher. Não soube bem o que responder. E desconversei.

Nos dias que seguiram elas fizeram muitas perguntas sobre o assunto: “Papai, por que você só ouve música de meninos?” “Por que na sua banda só tem meninos?” “Eu e a Mel podemos ter uma banda?” “Por que a mamãe não tem banda se ela também sabe tocar?” “Por que nesse desenho as meninas brincam de boneca e os meninos tocam guitarra?”. Eu poderia ter ignorado as perguntas. Ou ter respondido algo bem impulsivo e enviesado do tipo: “Tem mais homens fazendo música boa”. Não vou negar que esse pensamento havia cruzado minha mente muitas vezes. 

Montagem com duas fotos e fundo marrom. Nas fotos, duas meninas, na praia e numa árvore.

Naqueles dias eu li sobre uma pesquisa chamada “Olhos azuis x olhos castanhos”. Uma professra norte-americana branca, que lecionava numa escola para alunos brancos, nos anos de 1960, logo após o assassinato de Martin Luther King, inconformada com a violenta guerra racial que atravessava o país naquele momento, resolveu fazer um experimento.

Separou a turma entre os alunos de olhos azuis e os de olhos castanhos. No primeiro dia, a regra era dar uma série de privilégios aos alunos de olhos claros. Eles poderiam comer antes e em maior quantidade. Poderiam permanecer mais tempo no intervalo e eram mais encorajados a manifestar suas opiniões. Também eram mais ouvidos e, consequentemente, mais atendidos. Já no primeiro dia, ela teve que separar uma briga entre um “olho azul” e um “olho castanho”. Este último chorava copiosamente. “O que aconteceu?”, perguntou a professora: “Ele me ofendeu”. “O que ele disse?” “Me chamou de olho castanho”. 

A professora viu, nos dias do experimento, alunos de olhos castanhos que tinham notas exemplares, apresentarem um desempenho medíocre. Tinham dificuldade para fazer tarefas que normalmente eram tidas como banais. Alunos extrovertidos que se destacavam pela boa oratória ficaram retraídos, suscetíveis ao descontrole emocional ao menor sinal de adversidade. A situação se repetiu quando ela inverteu a situação e colocou os “olhos azuis” no pólo marginal. Novamente alunos com desempenho exemplar apresentaram uma queda de rendimento brusca.

Ao falar sobre o assunto, anos depois, num documentário chamado Olhos Azuis, ela nos convida a imaginar os efeitos disso na vida de pessoas expostas a esse tipo de tratamento durante toda a vida. Ou pior: ao longo de sucessivas gerações. Isso me fez pensar muito sobre a situação das minhas filhas, duas mulheres em formação.

Eu senti que havia algo no meu comportamento, algo na minha história que não estava certo. Acreditar que minhas duas filhas eram menos capazes que os filhos homens de outras pessoas me parecia injusto com elas, duas garotas incríveis. Eu não podia simplesmente ser conivente com esse pensamento. 

Mas então porque eu admirava praticamente só vozes e bandas formadas por outros homens? Foi então que eu me dei conta que aquelas duas meninas que mal sabem limpar o bumbum estavam desenhando pra mim, de forma bem didática, o que era o tal pacto da masculinidade, um sistema homoafetivo que compunha o meu gosto musical, que é fruto, como o de todos vocês, do mais conservador dos sentidos: a escuta. Quando as duas questionaram o meu gosto musical, elas incitaram o desconforto necessário para que eu reavaliasse meu comportamento.

Enfim, quando eu me dei conta disso tudo, eu fiquei meio paralizado. Senti até uma ponta de raiva. “Caraca, eu só quero curtir um som”. E me coloquei na posição da vítima: “Pô, tanta coisa que eu abri mão pra ser pai e agora não vou poder escutar minhas músicas?”. Raiva e vitimização são os sentimentos mais comuns quando somos colocados contra a parede em relação aos nossos privilégios.

Mas eu ouvi o chamado. E não tinha volta. Alguma coisa eu ia ter que fazer. Comecei, então, colocando aquela voz na minha cabeça no lugar dela, que não era o lugar da vítima. Vítimas, naquele caso, eram as minhas filhas. Feito isso, me coloquei um desafio bem básico, que é o que eu faço quando tenho vontade de desistir. Começo com algo pequeno e espero aparecer alguma ideia. Decidi fazer uma playlist só de cantoras. Adoro fazer playlists. Acho que tem algo artístico nesse processo. Exige pesquisa, conhecimento, sensibilidade e senso musical. Enfim, a pesquisa durou vários dias e como durante a pandemia eu passava muito com minhas filhas brincando, me revezando com a Luisa, mãe das meninas, passamos a ouvir a playlist chamada “As deusas” todos os dias.

Pesquisamos juntes sobre algumas cantoras que lhes pareciam distintas e despertavam a curiosidade. Luna virou fã de Madonna. Mel virou fã de Cindy Lauper, que ela chama até hoje de “Flindi Maufy, a irmã da Madonna”. Eu virei fã de Alicia Keys a ponto de deixar meus amigos roqueiros perplexos.

Esse movimento, apesar de corriqueiro, mudou bastante a minha percepção do mundo e, consecutivamente, minha vida. Vou frisar aqui dois pontos importantes dessa mudança de perspectiva.

  1. Vi meu privilégio desenhado. Eu percebi que o meu privilégio masculino permitiu que eu levasse 40 anos para ir atrás de entender que a falta de representatividade feminina na música não era natural. Que meu gosto musical era pautado por um pacto masculino que naturalizava a ausência de mulheridades. E essa ausência era um embuste, uma cilada, não era real. O que nos leva ao segundo ponto.
  2. Não existe silêncio das mulheres. Só silenciamento. As mulheres estão aí, criando, inovando. E quando eu, homem, me dispus a refletir sobre a questão, eu mostrei pras minhas filhas que quando elas não vêem meninas fazendo algo, não é porque faltam meninas de talento, ou porque falta talento às meninas, ou ainda porque a música, o futebol ou qualquer outra atividade não seja coisa pra menina. Mas porque a história contada está cheia de lacunas. E a gente pode preencher essas lacunas. Ou mudar essa história.

Meu gosto musical realmente mudou. Hoje eu escuto muito mais músicas feitas por mulheridades do que feitas por homens. Mas a história não acaba como numa cena de filme do pai dançando Girl on fire com as filhas ou com um abraço de pai e filha como no final do clipe de Papa don’t preach da Madonna. 

Felizmente não. Essa pequena ação não parou por aí. Comecei a criar playlists de outros grupos minorizados e descobri que mulheres trans são responsáveis por uma parcela imensa da melhor música brasileira da atualidade. Com esse alerta ligado, passei a reparar nos filmes, nas séries, nos livros. E percebi que autoras, diretoras e atrizes mulheres sempre traziam perspectivas únicas, que eram menos óbvias para mim, que sou homem. 

Nos meus estudos sobre tecnologia e diversidade, me dei conta que mais de 90% des autories mais inovadories eram mulheres e que elas tão à frente quando o assunto é inclusão, empatia e transformação. Passei a ler mais sobre feminismo, sobre masculinidade, e me dar conta de diversos vícios na minha postura que eram machistas. Interromper mulheres, pressupor que eram menos competentes (sem nunca assumir, é claro). Isso me levava a trabalhar quase que exclusivamente com homens. O que não tinha benefícios, pelo contrário, muitos conflitos e outras dificuldades q qq equipe pouco diversa enfrenta.

Eu percebi que algo na minha postura era incoerente e precisava ser revisto. Logo me dei conta que, à medida que aprendia a ouvir e respeitar as mulheridades ao meu redor, o trabalho com elas se tornava muito mais rico e sem os atritos tão comuns no trabalho só com com homens A convivência diversa ajuda a quebrar essa lógica do territorialismo. E isso torna a colaboração muito mais efetiva. E que pessoas que querem ser criativas e inovadoras não podem deixar isso de lado.  

Eu poderia falar mais de uma hora sobre todos os desdobramentos que aquela pergunta teve na minha vida. No meu relacionamento, nas minhas amizades, e como isso criou e segue criando ondas de transformação que transcendem a minha experiência individual. Mas para além das particularidades da minha história, acho que existem algumas questões mais abrangentes que podem ser tidas como pontos de contato entre a minha experiência e a de outros homens.

1. A responsabilidade de mudar

Nós homens não vamos mudar essa herança do patriarcado esperando que mulheres excepcionais ganhem o nosso respeito ou abram nossos olhos. Não foram minhas filhas que me mudaram. Elas foram o meu estímulo. Mas nós não precisamos esperar. Fui eu que promovi a mudança. Eu decidi mudar. Eu me ensinei a mudar, a desaprender para reaprender, como fizeram Gauguin e Klee. É claro que o impacto das minhas escolhas será muito menor do que a arte desses gênios. Mas eu garanto a vocês: ainda assim, é um impacto imenso.

Comecei pequeno e aos poucos fui assumindo essa mudança na minha vida pública. Hoje eu posso dizer que sei o que significa ser um homem feminista. Posso dizer que entendo a gravidade das consequências da falta de representatividade, para mulheres e mais ainda para grupos minorizados, que podem ter inclusive a sua expectativa de vida diminuída. Como é o caso de pessoas trans, de pessoas negras, indígenas. 

2. Empatia e consumo de conteúdo

Nós, homens, também sofremos com isso, pq somos afetados pela falta de diversidade nas histórias que consumimos. Na Diva nós chamamos esse problema de desequilíbrio de histórias. Nós estudamos esse tema a fundo. E a gente sabe que a falta de diversidade de histórias afeta nossa percepção do mundo. Reduz a nossa capacidade de sentir empatia. Limita a nossa competência como filhos, pais, maridos, amigos. Restringe nossas habilidades na vida profissional. Nos mantêm imersos numa bolha de poucas referências. Sufoca a nossa criatividade. Pesquisas que vão das humanidades à neurociência mostram que a criatividade e a capacidade para resolver problemas complexos e inovar estão diretamente relacionadas à nossa capacidade empática, de deslocar-se de si. E essa capacidade está atrelada ao nosso contato com a diversidade. E aí eu chego no terceiro ponto.

3. Esse não é um problema exclusivamente familiar.

O impacto disso tudo no cenário profissional e nas relações sociais como um todo é enorme, tanto em termos de produtividade quanto na capacidade criativa. As mudanças coletivas dependem de medidas estruturais acompanhadas de decisões individuais, de mudanças no mindset dos indivíduos. Por isso, práticas de consumo de conteúdo são um tema tão importante. Ao estimular essa mudança estamos mexendo numa cadeia produtiva inteira, criando novas demandas, identificando pontos críticos que deverão ser reavaliados. O impacto disso tudo no cenário corporativo é enorme, tanto em termos de produtividade e capacidade para inovar, quanto na comunicação de marca e na performance dos indicadores financeiros em tempos de ESG. Não tem cultura inclusiva, não tem pertencimento, não tem alto rendimento sem uma fé compartilhada em torno do valor da colaboração entre pessoas diferentes entre si.

4. Rompendo o pacto da masculinidade

Nós, homens, precisamos ouvir as vozes femininas e romper esse pacto excludente da masculinidade. Eu usei aqui o exemplo do gosto musical, mas isso acontece em todas as esferas. Ouvir não só as canções, mas as histórias, as dores e as ideias das mulheridades. A equidade de gênero começa com uma equalização interna das vozes na nossa mente. A voz das mulheridades precisa ressoar nos nossos ouvidos na mesma altura que a voz dos colegas homens. A escuta não é algo natural. Ela é fruto de um processo, que pode começar com uma playlist ou com a escolha de séries para assistir na Netflix, mas que vai exigir, em algum momento, decisões corajosas. Como tomar partido ao presenciar expressões de machismo no cotidiano, entre amigos ou colegas de trabalho. 

A responsabilidade de transformar a estrutura machista e transfóbica que nos cerca é nossa, dos homens. Não das mulheridades. Elas não têm que provar nem nos ensinar nada. Nós, sim, temos que provar que entedemos as demandas femininas. Que assumimos nossos privilégios. Que somos, enfim, capazes de ouvir. Afinal, a escuta é o lugar do saber, do aprender. 

Eu acredito que o despertar dos homens depende de um despertar do ouvido. Ouça mais. Interrompa menos. Mas não use o silêncio para tolerar o machismo e a transfobia. Se posicione. Cultive relações de amizade com mulheridades. Se abra para aprender com elas.

Montagem com duas fotos, uma com duas meninas fantasiadas e outra com um homem carregando duas meninas no ombro, em relação ao tema do pacto da masculinidade

As minhas filhas, Luna e Mel, são questionadoras. Elas também sabem reconhecer erros. E são ousadas. Elas são sensíveis. São carinhosas. Elas não pressupõem que homens, como eu, são incapazes ou menos competentes. Elas tratam todos os meninos com respeito, mesmo que às vezes eles pareçam bobos. E elas têm muito claro que cada corpo é um território sagrado. Um templo. E, por isso, elas jamais vão desrespeitar o corpo de outra pessoa, seja ela homem ou mulher.

Todo esse processo foi uma virada pra mim porque eu entendi que tinha muito a aprender com elas. Então, se eu pudesse resumir este texto em uma frase, eu diria que nós, homens, precisamos aprender o valor de agir como uma garota, agir como uma mulher. Um homem que aprende a “ser” com mulheres jamais será menos homem. Mas ele certamente será um ser humano melhor.


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Diva. United by difference.


Marcelo Téo é co-fundador da Diva Inclusive Solutions, pesquisador, educador, produtor de conteúdo, músico e pai. Suas pesquisas dentro e fora do âmbito acadêmico estão voltadas para o consumo narrativo e o papel da diversidade de histórias no desenvolvimento da empatia.