Nossa construção histórica é marcada por violências múltiplas. Não apenas contra indivíduos, mas contra grupos minorizados. Toda violência estrutural deixa marcas individuais e coletivas, no corpo e na memória. Movimentos de extermínio seguem em curso até hoje: racismo, transfobia, misoginia, capacitismo… são tantas expressões de ódio que é difícil entender que é possível termos uma saída como civilização. Nossas crises morais e éticas reverberam em crises humanitárias, ambientais, sanitárias, econômicas e sociais. Quase todas ocasionadas por hegemonias masculinas cishetero brancas (o “quase” é medida de proteção contra o perigo das generalizações).
Devemos nos questionar quais são os limites para que esse recorte deixe de ser um gerador de violência, crise e opressão. Precisamos forçar a quebra de posturas nefastas que seguem sem sofrer as devidas consequências de seus atos, de não pagar pelos seus erros, reparar os danos causados e, sobretudo, reconhecer seus privilégios. Precisamos cortar o cabo que alimenta esse gerador definitivamente. Para isso, precisamos quebrar os múltiplos pactos interseccionais (vocês verão repetições nas diferentes abordagens a seguir, pois estamos falando de uma estrutura hegemônica que se manifesta de muitas formas) que fecham o ciclo onde as hegemonias que geram violências têm seus crimes julgados por semelhantes. É o homem branco cis hetero rico julgando a sua própria imagem e semelhança.
Esses apontamentos buscam tecer um olhar mais crítico sobre os ferramentais de opressão. Ao mesmo tempo, têm a intenção de provocar reflexões em pessoas que carregam em si o desejo por justiça social, mas que, muitas vezes, sem se dar conta, também compactuam com uma série de questões problemáticas propositalmente invisíveis.
O pacto da branquitude: é preciso quebrar esse sistema de violência e manutenção de privilégios que opera contra pessoas negras e indígenas. É dentro desse sistema que o racismo cria barreiras de acesso à justiça, a direitos fundamentais e à reparação histórica. É preciso que a sociedade entenda a branquitude como criadora e operadora do racismo estrutural, e que a mesma se responsabilize pela sua queda e todas as questões relacionadas à ele. É urgente que o Estado brasileiro crie reparações históricas para a herança escravista que compõe o tecido social brasileiro e não use de sua força financeira, militar e institucional para discriminar, excluir, violentar e matar pessoas negras e indígenas. Só a partir de ações efetivas do Estado é que conseguiremos mudar os comportamentos individuais racistas, os quais se reverberam no próprio Estado e nas corporações. Precisamos quebrar o corpo político majoritariamente branco, masculino, cisgênero e teoricamente heterosexual. É preciso diversidade nos espaços de poder, tanto no público quanto no privado, para que haja possibilidade de justiça e ascensão a grupos historicamente subalternizados.
O pacto da masculinidade: é preciso criar meninos longe da masculinidade tóxica, denunciar violência doméstica, sexual, moral e física. É preciso que homens (cis hetero) percam seu passe livre à violência sem que respondam por seus atos. Repito: é preciso identidades múltiplas nos espaços de poder! É preciso que haja real equidade de gêneroS. Também se faz fundamental que a sociedade, como um todo, entenda que vivemos em uma sociedade homoafetiva (não homossexual, homoafetiva!) onde homens são criados e treinados para admirar outros homens. Enquanto homens votarem apenas em outros homens, consumirem conteúdo de outros homens, fizerem negócio com outros homens e reservarem os campos de afetividade, confiança e admiração apenas a outros homens, não haverá equidade em nenhuma instância. É preciso quebrar esse ciclo hermético e permitir que outras identidades ocupem esses espaços simbólicos.
O pacto da burguesia: é mandatório que o Estado proteja a vida antes da propriedade. Para isso, é preciso ruir a polícia militarizada, a especulação imobiliária, o racismo e o classismo no acesso à justiça, a herança escravista, o capital acima das políticas públicas de combate à desigualdade e acesso à direitos fundamentais, a lógica do extrativismo, a exploração pautada em raça, classe e gênero, a desigualdade social como lógica de criação de mão de obra barata. Aqui também se faz necessário resumir a lista, pois a mesma é sem fim quando se trata de estratégias de acumulação de capital.
O pacto da cisgeneridade: não há possibilidade de felicidade plena sem a ruptura do controle dos corpos e das identidades. É preciso descolonizar a organização social eurocêntrica de gênero, a política binária e suas hierarquizações. É preciso que se quebre a tela onde se projeta o delírio da ideologia de gênero sobre pessoas LGBTs – sendo que a única ideologia compulsória se resume na cisheteronormatividade enfiada goela abaixo de todo mundo. É preciso romper com as ditaduras comportamentais e o domínio masculino cisgênero para que outras identidades possam florecer e cicatrizar suas feridas.
O pacto da espécie: é preciso adotar uma postura abolicionista em todas as instâncias. Reconhecer animais não humanos como sujeitos de direito. Libertá-los da exploração, da crueldade e da morte. É preciso deixar o negacionismo de toda ordem e também aceitar o que a ciência já nos provou há tempos: a senciência e subjetividade dos animais não humanos, da sua capacidade de afeto, de sentir angústia, dor e medo. Precisamos abrir mão de nossas conveniências e entender que as atrocidades da escravidão e do holocausto podem ser praticadas contra qualquer espécie. Que a violência e a perversidade podem ser depositadas sobre qualquer tipo de vida. Para isso, precisamos tornar nossa empatia e nosso conhecimento maiores que nossos caprichos.
O pacto do extrativismo: só existe um planeta. E seus recursos são finitos. Não temos a capacidade de sobreviver a qualquer condição e sob quaisquer circunstâncias. A ganância, a exploração e o extrativismo como fundamentos do capitalismo neoliberal cria relações onde o planeta é propriedade de poucos, mas as consequências são sofridas pela maioria. Precisamos freiar a monocultura, o garimpo ilegal, o uso desenfreado de agrotóxicos, a emissão de poluentes, a utilização irresponsável da água, as explorações múltiplas. No fim das contas, estamos assistindo os grandes privilegiados do mundo destruírem nossa possibilidade de futuro, na mesma medida em que promovem o genocídio indígena, aumentam os abismos sociais e ambientais, e alimentam a indústria farmacêutica por meio do envenenamento da população.
O pacto do padrão corporal: libertemos todos os corpos e aceitemos que vivemos em um complexo de diversidade estética e funcional. Que se adaptem conteúdos, campanhas, prédios, tecnologias, indústrias, modelagens e qualquer estrutura que só comporte corpos magros, brancos e sem deficiência. É preciso pensar na liberdade de ir e vir de todes, e construir real senso de valor, amor próprio e autonomia. É preciso despadronizar os ritmos, os tipos, os desejos e os moldes. É preciso libertar os corpos, não para que se gere novas formas de consumo, mas para que ingressamos em uma consciência onde a diversidade é uma característica inerente à nossa existência.
O pacto da monocultura: de uma vez por todas, precisamos entender a diversidade como princípio da vida. Nem na agricultura, nem nas relações, nem nas identidades, nem na educação, nem nas construções sócio culturais, nem nas experiências sensoriais. É preciso libertar e multiplicar, deixar fecundar a abundância de pensamento, de expressões, de tipos, de fauna, de flora, de amor e de foda. É preciso ruir as políticas de controle e uniformização, sejam elas quais forem. A vida só será abundante quando nossas lógicas abraçarem a diversidade intrínseca em sua natureza.
O pacto do silêncio: não há justiça social sem denúncia e sem investigações sérias. O silêncio perpetua violências, relações abusivas, opressões históricas e a falta de acesso à justiça. É preciso se meter nas relações onde haja violações. Seja na vida de “marido e mulher”, seja na rua ao presenciarmos situações de agressão e preconceito, nas escolas, nos espaços corporativos ou na nossa própria estrutura familiar. A conivência fortalece os agressores (eu não neutralizo a linguagem neste trecho, pois os corpos masculinos hegemônicos são os maiores responsáveis pela opressão e violação de direitos de grupos minorizados) e não venceremos as estruturas que nos violam se não enfrentarmos as violências contra os nossos corpos e contras aquelus que nos cercam.
A lista de pactos selados entre os que detém o poder e as estruturas de controle é enorme, interseccional e cheia de lacunas. Eu poderia ir ao infinito dentro das minhas reflexões sobre os múltiplos achatamentos sociais e sobre os limites das violências que configuram o pior lado do ser humano. Mas, mesmo que de maneira meio falha, talvez desordenada, me cabe alguma síntese. E, nela, também me permito flertar com o contraditório e entender que também estou em transformação de análise e na construção de meu olhar crítico sobre as questões que alicerçam o mundo. Venho provocando mudanças em mim constantemente e, numa tentativa meio desesperada, tentando provocar um pouco disso ao meu redor.
O que me parece indiscutível é que não há possibilidade de nos reinventarmos, nem de reinventarmos o mundo, se não houver abandonos, novos posicionamentos e enfrentamentos dos pactos que mantém a realidade nesses moldes. São processos árduos que envolvem todos os indivíduos do sujeito coletivo, mas há de se colocar uma cobrança especial sobre o Estado e as corporações, os quais detém o poder do capital, da coerção e da manipulação. Mas, também da mudança.
Transe é uma coluna dedicada a concentrar reflexões e vivências pessoais em torno de minha transição de gênero. É um compilado de questões identitárias com costuras sobre problemas estruturais, sistemas de controle social, perversidades do patriarcado neoliberal e descolonização da organização social e dos corpos. Em suma, uma galeria de pensamentos que nos provoquem reflexões rumo à uma nova consciência.
Duda Téo é sócia da Diva Inclusive Solutions, responsável por design e comunicação. É designer gráfica, artivista visual, comunicadora, travesti e vegana. Há mais de 25 anos no mercado de comunicação e design. Defensora das causas trans e travestis.