Esta coluna nasce de algumas decisões: a primeira, de criar um registro da minha transição de gênero e jornada hormonal. Processo que tem me possibilitado virar a própria mesa, no que diz respeito aos fundamentos que eu entendia como estruturantes da minha identidade. A segunda decisão foi uma promessa: não permitir que o isolamento social profundo durante a pandemia do Covid-19 transforme esse período da minha vida num hiato, num tempo perdido no qual não ganhei ou construí nada de significativo. E a terceira, mas não menos importante, trazer para a mesa da Diva um teor mais pessoal, que me humanize dentro do complexo de subjetividades que me forma. A partir disso, estabelecer diálogos e conexões mais poderosas e reais entre mim e as pessoas que venham a ler essa coluna.

Encontrar um nome que sintetizasse os propósitos da minha escrita e das minhas vivências enquanto travesti foi um grande desafio. Trabalhei em uma lista bastante grande de possibilidades que evidenciassem o caráter transitório, não apenas corporal, mas de pensamento e entendimento do mundo. Busquei traduzir, de alguma forma, os devaneios, reflexões e utopias que vêm preenchendo meus dias mais inflamados. Como uma espécie de atravessamento, de um descolamento do meu corpo presente para um outro espaço, um outro estado de consciência, um… transe.

No dicionário, transe retrata “uma conjuntura aflitiva, ou perigosa; momento crítico; crise, perigo. Fenômeno religioso e social de representação coletiva, no qual o médium experimenta um sentimento de identificação com comportamentos correspondentes a determinada divindade ou entidade.” Na prática, um descolamento absoluto a qualquer conotação religiosa. Se trata de um estado reflexivo capaz de me colocar em um ponto de discordância em relação ao que meu corpo e minha existência representam em um mundo normativo regulado por uma supremacia cisgênera e heterossexual compulsórias.

Estar em transe é, de alguma forma, me permitir esse desabitar do aqui e agora e adentrar em um estado que me possibilita entender, refletir e buscar estratégias de ruptura das estruturas que moldam as opressões sobre corpos desobedientes de gênero. Ao mesmo tempo, estar em excitação, em troca de fluídos, em momento crítico de entendimento, na beira do abismo da compreensão, em processo de resignificação do sexo enquanto metáfora, enquanto troca não apenas corpórea, mas de saberes, de intelectualidades, de estratégias e de perspectivas que nos permitam delirar em direção à possibilidades de um novo mundo guiado por outras lógicas, diversas, não hegemônicas, descoloniais e que nos permitam pontos de fuga e de hackeamento do CISTEMA.

Transe é um depositório de estilhaços, de fragmentos reflexivos e reflexos quebrados daquilo que compõe minhas substâncias existenciais, intelectuais e afetivas. É um espaço de produção de subjetividades e de ampliação da compreensão das mais diversas dores que assolam aquelus que ousam viver fora dos regimes de controle social pelo viés sexo, sexualidade e gênero.

A jornada começou. Sejam bem-vindes.

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Transe é uma coluna dedicada a concentrar reflexões e vivências pessoais em torno de minha transição de gênero. É um compilado de questões identitárias com costuras sobre problemas estruturais, sistemas de controle social, perversidades do patriarcado neoliberal e descolonização da organização social e dos corpos. Em suma, uma galeria de pensamentos que nos provoquem reflexões rumo à uma nova consciência.

Duda Téo é sócia da Diva Inclusive Solutions, responsável por design e comunicação. É designer gráfica, artivista visual, comunicadora, travesti e vegana. Há mais de 25 anos no mercado de comunicação e design. Militante das causas trans e travestis.