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O PODER DA INFÂNCIA

O PODER DA INFÂNCIA

Por Marcelo Téo

TEMPO DE LEITURA: 7 MINUTOS

Uma das grandes causas de conflitos que marcaram a história da humanidade é a nossa intolerância à diferença. A invenção de marcadores capazes de construir muros entre “nós” e “eles” serviram de justificativa para genocídios, guerras e omissão em casos de catástrofes ou epidemias. Ao longo dos tempos, a segregação religiosa, o nacionalismo, o racismo, o sexismo e outras formas de preconceito manifestas através da linguagem ou da cultura foram causa, finalidade e justificativa de massacres que jamais teriam sido tolerados num modelo de sociedade pautado pelo acolhimento da diversidade.

Mesmo em esferas mais reduzidas, como na escola ou num parquinho, por exemplo, as diferenças se tornam alvo para bullies, pois nelas reside a vulnerabilidade. A ciência e a tecnologia pouco conseguiram fazer diante de problemas desta ordem. Seja numa esfera global, de grandes conflitos nacionais ou internacionais, de pandemias ou catástrofes ambientais, seja no âmbito local, dos ciclos de violência familiar ou da epidemia de bullying nas escolas, vivemos numa sociedade que marginaliza as vítimas, reduzindo suas oportunidades e amplificando seus traumas.

Menino negro com uma lupa e fundo desfocado, mostrando o poder da infância
Foto de Monstera do Pexels

A infância é uma ferramenta importante – mas subestimada – na construção de uma sociedade mais acolhedora. Ela tem um poder de ação no presente e sobre o futuro. As crianças representam uma oportunidade para criar uma nova ordem, na qual nossas diferenças possam ser reconhecidas e respeitadas, e nossas semelhanças utilizadas como força para a união e o enfrentamento de conflitos de forma pacífica e harmoniosa. 

A infância e o presente: crianças transformam adultos

No presente, crianças são – e podem ser ainda mais – um veículo de transformação de adultos. Livres das amarras que nos prendem a uma performance social cheia de preconceitos e vieses, elas conseguem provocar reflexões em torno de ações instintivas ou impensadas que, normalmente, passariam despercebidas. Quando uma criança fala sobre uma família homoafetiva com uma naturalidade doce, ela consegue inspirar mudanças que, no fundo, todes desejamos. (Até os mais fervorosos homofóbicos, lá no seu íntimo, acredito, devem sonhar com um mundo onde não tenham que usar o ódio para abafar desejos que não são capazes de assumir).  

Crianças têm momentos de lucidez que nos surpreendem. E nos comovem. São numerosas as histórias que mostram crianças dando lições em adultos que acabam viralizando. Elas conseguem nos desarmar, fazer perguntas e se comunicar de forma autêntica, realmente interessada em encontrar soluções. Problemas que por vezes parecem complexos demais, ou mesmo insolúveis, podem ser desmistificados numa conversa sincera com uma criança. Marcadores de opressão que afetam a vida de milhões de pessoas ao redor do mundo são dissipados aos olhos de uma criança que tem a oportunidade de ser ouvida e valorizada. O desconforto que muitas vezes nos acomete por não sabermos lidar com as diferenças pode soar absurdo diante de um leve e sincero olhar infantil. 

Fundo amarelo com uma menina negra tapando os olhos com as mãos, cujas palmas apresentam dois olhos, simulando o poder da infância.
Foto de Cottonbro do Pexels.

Pessoas que se tornam pais, mães ou que convivem intensamente com crianças têm diante de si uma oportunidade de transformação, muito embora ela nem sempre seja aproveitada. Educar um ser que é novo nesse mundo, e que é abençoado com a pureza dos pensamentos é um desafio enorme. E a empatia é uma ferramenta poderosa para a educação infantil. Ela pressupõe a escuta, a busca pela compreensão das necessidades de outro ser humano. 

Mães, em geral, são mais sensíveis nesse sentido. Isso porque as mulheres não são desencorajadas a cuidar, pelo contrário: o cuidado infantil lhes é imposto. Os homens, de outro lado, são colocados progressivamente, mesmo que a contragosto, num papel coadjuvante, isento de algumas responsabilidades. Pais que conseguem transcender esses protocolos sociais sugeridos pelo machismo estrutural vivem a parentalidade de uma forma muito mais intensa. E acabam descobrindo o valor inestimável dessa experiência no seu crescimento pessoal. 

A parentalidade é um processo único, onde é possível fazer uma espécie de etnografia de si. Ao tentar educar esse ser novo na Terra, somos obrigados a organizar nossos valores para tentar ser coerente. Ainda assim nos deparamos com dúvidas, com perguntas que adultos já não fazem mais. E nesses momentos de questionamento, nosso sistema de crenças é posto à prova. Essa é a oportunidade que as crianças criam para nós. Abrem um portal para sairmos de si. Mas a opção de entrar nele e ver o mundo com outros olhos permanece nossa.

A infância é a matéria prima do futuro

Parte do nosso crescimento rumo à vida adulta está direcionada a um processo civilizador que aponta na direção da exclusão e da injustiça. É injusto com as crianças dizer que o ser humano nasce mau. Nós crescemos numa estrutura colonial que já dura séculos. Quase todas as portas desse labirinto levam a lugares comuns, que reforçam a desigualdade e promovem a intolerância como forma de manutenção dos privilégios de uma minoria. É um sistema complexo, que se espalhou de forma viral e hoje parece parte de nós. Mas não é. 

Uma criança educada para a empatia terá uma probabilidade muito menor de incorrer, na vida adulta, nos equívocos da intolerância e da violência como ferramentas de imaginação do mundo.

Meninos se tornam homens e aprendem, mesmo sem querer, as diretrizes da masculinidade tóxica para usufruir dos privilégios do patriarcado. Meninas se tornam mulheres e, muitas vezes, assimilam papéis restritivos que tolhem a sua potência. Crianças brancas crescem sem compreender os privilégios advindos da sua cor da pele, e acabam reproduzindo ações que sustentam o racismo estrutural. Crianças negras são excluídas desde a mais tenra infância, internalizando um leque restrito de opções para sonhar. Crianças transgêneres crescem sob o signo da violência, que começa na família, seu porto seguro, e se reproduz na escola, no parquinho, e tantas outras situações de exclusão a que são submetidas. Crianças com deficiência carregam, muitas vezes, o peso de não corresponderem à expectativa da família e da sociedade, como se não fossem dignas de amor nem capazes de contribuir para construir um mundo melhor. Crianças indígenas às vezes se tornam adultas que negam sua própria cultura para tentar desviar as violências que seu povo ou sua família sofre no cotidiano.

Menino negro segurando uma bandeja com frutas e legumes. Fundo branco.
Foto de Monstera do Pexels.

Hoje o nosso mundo está populado por jovens que viveram muitas destas violências na infância. E existe um movimento cada vez mais forte para desnaturalizá-las. Nesse processo, é preciso não apenas mudar o mundo dos adultos, mas repensar a educação das crianças, a ação das famílias e das escolas. Já entendemos que as mudanças não são imediatas. E que, muitas vezes, acontecem retrocessos. Depois de avanços significativos em termos de ações afirmativas para nivelar as oportunidades, vivemos hoje um momento de proliferação do ódio e naturalização das desigualdades. 

Para evitar que esse movimento social se resuma a um perpétuo vai-e-vem sem que, no longo prazo, aconteçam mudanças reais, é fundamental que parte das nossas energias transformadoras sejam canalizadas para a infância. Uma criança educada para a empatia terá uma probabilidade menor de incorrer, na vida adulta, nos equívocos da intolerância e da violência.

Perceber a diversidade para imaginar o futuro

Por isso falar sobre diversidade na infância é tão valioso. Se a intolerância é o motor dos conflitos, o combustível da violência e a justificativa para a desigualdade, e a infância o locus onde esse mal pode ser combatido, então temos uma evidência clara sobre quais caminhos precisamos tomar para que o mundo mude de fato. Uma infância saudável depende do acesso e da convivência com a diversidade. Crianças e adolescentes, como todo ser humano, precisam de experiências plurais. Só assim vão compreender que as relações sociais podem e devem extrapolar os modelos familiares e os círculos de convivência direta a que estão expostas. Uma rotina carente de diversidade enfraquece o desenvolvimento da capacidade empática, uma habilidade que se desenvolve nos primeiros anos e que vai ser bastante acessada, quando disponível, na vida adulta. 

Fundo azul com menina negra fotografando com uma câmera polaroid, simbolizando o tema do artigo sobre o poder da infância
Foto de Amina Filkins do Pexels

A convivência com a diversidade, seja ela física ou por meio de histórias, é a chave. E, nesse cenário, a família e a escola são protagonistas. Sendo a família o seio da esfera privada, e a escola, um espaço de preparação para a esfera pública, como sustentar uma democracia sem confiança nas instituições educacionais e sem discernimento do que é coletivo e o que é individualidade? A confiança nas instituições e sobretudo nos profissionais da educação é fundamental para que a escola e a família se complementem na formação de cidadãos mais preocupados em resolver os problemas do mundo do que em assegurar seus próprios privilégios.

Precisamos sim falar sobre diversidade com crianças e enfrentar os desconfortos que vierem com o debate. Defender a diversidade é parte essencial de um exercício de imaginação do futuro, que contemple as nossas diferenças e garanta às crianças o direito a uma existência plena e digna.


Break the bubble.
Diva. United by difference.


Marcelo Téo é co-fundador da Diva Inclusive Solutions, pesquisador, educador, produtor de conteúdo, músico e pai. Suas pesquisas dentro e fora do âmbito acadêmico estão voltadas para o consumo narrativo e o papel da diversidade de histórias no desenvolvimento da empatia.