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IMPACTOS DA PARENTALIDADE CONSCIENTE

IMPACTOS DA PARENTALIDADE CONSCIENTE

Por Marcelo Téo

TEMPO DE LEITURA: 12 MINUTOS

A parentalidade é repleta de desafios. E nisso não há novidade alguma. O nosso papel na educação das crianças, que um dia serão adultas, é complexo, irregular, instável, descontínuo, desgastante, repleto de frustrações, desafiador, mas também gratificante, surpreendente e estimulante.

A pandemia intensificou tudo isso de forma exponencial. A correria do dia a dia virou uma maratona. As dúvidas se transformaram em grandes labirintos. E toda vez que ouvimos pessoas sem filhes reclamar das suas próprias jornadas, nos sentimos incomodades, porque nada parece ser mais difícil do que ser pai/mãe durante uma pandemia que já dura quase dois anos. 

Decidi escrever sobre o assunto para tentar lidar com as minhas próprias dúvidas e, sobretudo, com as minhas frustrações. Dúvidas sobre quais são as melhores decisões. Frustrações em relação às expectativas que eu criei. A escrita, nesse cenário, pode ajudar a desanuviar a mente, ajudar a estruturar o pensamento e decidir o que fazer quando mudar é necessário. Esse texto é parte desse exercício de cura, de movimento e de mudança.

Imprevisibilidade x expectativa

Uma das questões complexas que permeiam nosso processo de educação parental diz respeito a quais habilidades queremos estimular em nossas crianças, pensando no seu futuro. 

O primeiro dilema começa aqui: como pensar no futuro des nosses filhes sem limitar com expectativas parentais a sua liberdade para encontrar e expressar a sua identidade? Esse é um assunto delicado. Especialmente porque a maioria de nós carrega frustrações e traumas relacionados à nossa infância, à nossa criança ferida. É comum transformarmos esses sentimentos em expectativas e projeções quando assumimos esse novo posto de responsável parental. “Eu quero que a minha família seja assim”, “que não seja assado”, “eu quero que minhe filhe faça as coisas que eu sempre quis e não pude”. Projeções. 

Um homem branco com criança pequena atravessando um rio numa relação de parentalidade
Foto de Jan Kopřiva do Pexels

O problema é que toda relação humana é marcada pela imprevisibilidade. Os nossos desejos conscientes esbarram em ações guiadas por instintos, memórias, traumas que moram no nosso inconsciente. E, do outro lado, as pessoas com as quais nos relacionamos, sejam elas pais, mães, filhes, amigues, possuem seus próprios desejos, suas próprias dúvidas, suas próprias necessidades.

Substituir a expectativa por uma consciência da imprevisibilidade é um exercício importante. Quando aceitamos que o futuro des nosses filhes não nos pertence e não existe fora do que está sendo construído no presente, essas imagens ideais vão sendo abandonadas. E isso nos habilita a ver melhor o ser que está diante de nós.

Essa imprevisibilidade é o combustível das nossas emoções, as boas e as ruins. Sem esse elemento, a vida perece. Ela advém da nossa diversidade. As nossas diferenças fazem do mundo um lugar surpreendente. Mas para muitos de nós, especialmente pessoas que, como eu, são controladoras, é muito difícil aceitar as consequências inevitáveis da imprevisibilidade no processo de educação des filhes. 

A cada embate, a cada conflito, um medo enorme de fracassar toma conta. Esse medo muitas vezes ativa sentimentos profundos que podem nos levar a ter reações inesperadas, desproporcionais, descabidas, contraditórias. 

Substituir a expectativa por uma consciência da imprevisibilidade é um exercício importante. Quando aceitamos que o futuro des nosses filhes não nos pertence e não existe fora do que está sendo construído no presente, essas imagens ideais vão sendo abandonadas. E isso nos habilita a ver melhor o ser que está diante de nós. 

Quem é essa criança? 

Achar que sabemos tudo sobre a identidade des nosses filhes é um engano. Desejos, sensações, impressões: a percepção e a subjetivação do mundo pelas crianças são processos imprevisíveis e difíceis de captar. Elas próprias sentem muita dificuldade para expressar ou traduzir sentimentos atrelados à realidade vivida. Pais e mães se supreendem, ao longo da vida, com ações ou escolhas des filhes que fogem completamente à imagem que formamos delus. 

Um exemplo. Uma de minhas filhas, quando tinha cerca 5 anos, começou a apresentar muita dificuldade dividir brinquedos com a irmã menor e outras crianças. Ela também tinha um ímpeto muito presente de enfrentamento. Eu me sentia arrasado só de pensar no que ela enfrentaria na escola nova que estava prestes a iniciar. 

Passadas algumas semanas, tivemos uma reunião de rotina com a professora. Eu desatei a falar das questões que eu tinha certeza que deveriam estar acontecendo com a minha filha na escola. A minha intenção era ser honesto com a professora e pedir a ela que fosse compreensiva. A educadora me olhou com surpresa e me descreveu uma outra criança, que com frequência auxiliava na resolução de conflitos entre outras crianças, cedia seus brinquedos, se colocava à disposição para ajudar. Eu quase chorei na frente dela. Não sabia o que pensar. Não conseguia entender. 

Menino negro com cara de constrangimento e uma mão adulta apontando o dedo para ele numa relação de parentalidade.
Foto de Monstera do Pexels.

Mas felizmente, muitas dessas surpresas seguem acontecendo. E aos poucos eu venho entendendo que eu não sei tudo sobre minhas filhas. Que tem muito delas que está guardado e que talvez demore para eu acessar ou compreender. Que nem toda a raiva que causa a birra ou a malcriação tem a ver comigo ou são fruto do meu fracasso como pai. É preciso aprender a identificar o sentimento e aprender o que fazer com ele sem machucar as pessoas ao nosso redor. Um exercício que vale para as crianças e para nós, adultos.

Mas entender tudo isso não significa deixar de sentir os desconfortos gerados no cotidiano, nesse processo árduo de educar seres humanos em formação. São os desconfortos que nos tiram da rotina sentimental e nos ajudam a perceber a necessidade de mudança, de adaptação aos ritmos cambiantes da infância, que assume uma nova forma em cada criança.

Confiança, exemplo, diversidade

Levando em conta a imprevisibilidade das relações, o papel perigoso das expectativas parentais e o fato de que não sabemos tudo sobre nosses filhes, e isso é normal, quais são as bases para uma relação saudável e próspera, que aumente a nossa esperança de que as crianças cheguem à adolescência sem nos odiar e com uma consciência crítica sobre o mundo ao redor?

Às vezes acho que respostas-clichê como amor e carinho não deixam muitas pistas de como proceder. E ainda colocam em dúvida os nossos sentimentos. Mas acredito que existem alguns pilares essenciais nesse processo.

O primeiro deles é a confiança. Ela é fruto não apenas de eventos isolados, mas de uma estrutura de funcionamento das relações. A criança precisa saber que pode contar com a gente, mesmo quando ela sabe que o resultado das suas ações vai nos desagradar. “Pai, derrubei minha experiência todinha no tapete. Você disse que eu não podia brincar com ela dentro de casa e eu desobedeci. E agora preciso da sua ajuda”. Deve haver consequências, mas também cumplicidade e valorização da sinceridade e do reconhecimento do erro.

A confiança também depende da criança desenvolver a expectativa de que os seus problemas nunca vão ser minimizados pela gente. Isso não quer dizer que tenhamos que resolver por elas. Mas reconhecer que a realidade do problema é importante. Mesmo que, em seguida, a gente lembre que o desafio precisa ser vencido por ela. O tédio, por exemplo, é um sentimento real. Ainda mais em pandemia. Reconhecer isso e ajudar a pensar em formas de combatê-lo – não dizendo o que fazer, mas fazendo boas perguntas – é um passo importante para a autonomia da criança.

Mulher asiática com criança praticando yoga numa relação de parentalidade.
Foto de Kamaji Ogino do Pexels.

Confiar é um sentimento maravilhoso. Traz uma segurança que, sobretudo na infância, vale ouro. O medo é um monstro imenso quando somos crianças. Ele está no escuro, pois a imaginação às vezes vai longe demais. Está na família e na escola, sob a forma da rejeição. E no sonho, que pode transformar o excesso de estímulos do dia-a-dia num filme de horror. Poder confiar, nesse mar de inseguranças que é comum a todes, é uma benção. Essa dimensão da confiança é estimulada por um comportamento parental empático: coloque-se no lugar da criança, entenda o medo, acolha o desespero.

O segundo pilar, na minha experiência, é o exemplo. Me dei conta disso hoje mesmo, quando, no intervalo da escrita, fui com minhas filhas no parque. Encontrei lá outro pai com duas filhas. Enquanto ele jogava bola com a sua mais velha, e eu brincava com a minha caçula, as outras duas se aventuravam no parque. Escutei um choro e chamei o pai, avisando que sua filha menor havia caído. Corremos pra lá e ela estava com o queixo sangrando. 

O pai, num misto de preocupação, nervosismo e constrangimento, pediu calma à filha mais velha que tentava ajudar, levantando a voz. Ela tentou novamente ajudar, agora bastante preocupada com a irmã ao ver sangue nos seus dentes: “Pai, olha o dente dela!”. Ainda mais apavorado, o pai olhou e era apenas um pouco de sangue do lábio cortado. Já gritando, ele pedia calma, contradizendo sua própria indicação e constrangendo a menina na frente de estranhos. Eu não sei exatamente como eu teria reagido no lugar dele. Mas poder ver de fora aquela situação, me fez pensar. 

Nós temos o poder de decidir, pelo menos na maioria das vezes. E quando as coisas saem do controle, podemos revisar nosso roteiro, incluir um pedido de desculpas, reconhecer os erros e seguir adiante. 

Entre o corpo e as palavras, aquele pai passava não uma, mas várias mensagens, algumas contraditórias entre si. E na cabeça das crianças, é sempre mais provável que as palavras recebam menor atenção. 

Educar pelo exemplo não significa ser perfeito, nunca errar, nunca perder a paciência. O exemplo é como uma história. Nós temos o poder de decidir, pelo menos na maioria das vezes. E quando as coisas saem do controle, podemos revisar nosso roteiro, incluir um pedido de desculpas, reconhecer os erros e seguir adiante. O grande desafio é alcançar essa habilidade da imaginação narrativa, através da qual criamos uma imagem, um roteiro ou, para ser mais direto, um ideal de exemplaridade. Com isso em mente, fica muito mais fácil fornecer boas referências, de forma insistente, em situações recorrentes, como acidentes domésticos, brigas, interações problemáticas com outras crianças ou adultos etc.

O terceiro pilar é a diversidade como princípio. Entendo esse conceito como uma espécie de motivo musical, tipo o Tã tã tã tããã da 5ª sinfonia de Beethoven, que se repete na obra toda, em diversos timbres, notas, tons e dinâmicas. Assim como a vida em todas as suas camadas e espécies, crianças precisam de diversidade. Elas precisam de rotina, de estabilidade, mas também de opções plurais para assimilar modelos distintos, flexibilizando a sua percepção do mundo. 

A deficiência, a cor da pele, os modelos familiares diversos podem ser vistos numa outra chave pelas crianças, que não a do capacitismo, do racismo, do sexismo, da binariedade. E é provável que nos ensinem a conviver melhor com as diferenças à medida que tenham oportunidade de vivenciá-las.

A diversidade no brincar ensina que meninos e meninas têm mais opções criativas e identitárias do que aquelas muitas vezes impostas pelos padrões de uma sociedade normativa. É brincando que as crianças assimilam comportamentos, estabelecem conexões e compreendem como as possibilidades de existência social são plurais. Brincar é também imaginar o futuro. Um menino coibido de brincar com bonecas está perdendo a oportunidade de imaginar um modelo de parentalidade mais participativa, onde o pai também deve assumir responsabilidades e viver os prazeres de cuidar de outro ser. 

Uma menina negra abraçada em duas melheres com fundo desfocado numa relação de parentalidade
Foto de RODNAE Productions do Pexels.

A diversidade da convivência, para além dos laços primários, é fundamental. O papel da família é, entre outras coisas, ser curadora da experiência, da vida em sociedade. Proporcionar e estimular experiências com crianças e adultos diversos entre si é um caminho orgânico e efetivo para que as crianças cresçam com uma compreensão afetiva da pluralidade. Afinal, é mais fácil odiar ou ser indiferente àquilo que não conhecemos. E é muito comum que elas percebam com mais naturalidade traços tidos como dissidentes da norma por boa parte dos adultos criados sob as rédeas da normatividade. A deficiência, a cor da pele, os modelos familiares diversos podem ser vistos numa outra chave pelas crianças, que não a do capacitismo, do racismo, do sexismo, da binariedade. E é provável que nos ensinem a conviver melhor com as diferenças à medida que tenham oportunidade de vivenciá-las.

Semear no presente, aceitar o futuro

Acredito que crianças confortadas pela confiança sincera, inspiradas por exemplos consistentes e coerentes, e estimuladas por uma diversidade de experiências têm uma grande probabilidade de serem adultos mais felizes e mais relevantes para o mundo. Educar é um processo que deve ser ancorado pela observação e voltado para o presente. O futuro, venha como vier, será uma consequência. E, seja quais forem as nossas opções, ele está fora do nosso controle. 

Observar os interesses das crianças e estimular a sua autonomia certamente vai ser mais efetivo do que prepará-las desde cedo para o vestibular de medicina ou para ser o CEO de uma multinacional. De todos os processos de aprendizado da infância, o desenvolvimento da inteligência emocioal é o mais fundamental. É importante tomar consciência, principalmente no caso de famílias privilegiadas, que nosses filhes – e o mundo – precisam mais de pessoas capazes de acolher e respeitar as diferenças, e lutar pela justiça social, do que de oportunidades exclusivas compradas com dinheiro, sem um olhar sensível para a identidade da criança. 

As chaves de uma educação parental voltada para o futuro das crianças dependem de uma percepção afiada do presente e da alteridade, a fim de que elas cresçam sob o signo da empatia. Junto com ela, crescem a coragem e a imaginação necessárias para lidar com problemas sociais e criar soluções complexas para questões que, entre nós, adultos, ainda causam desconforto e parecem insolúveis.

5 dicas para o exercício de uma parentalidade consciente

  1. As relações são imprevisíveis. E, por isso, estão fora do nosso controle. Aceite e aprenda a contemplar os elementos-supresa desse processo.
  2. Concentre-se mais em observar do que comparar. As expectativas em relação às crianças não são saudáveis, nem pra elas, nem pra nós. 
  3. A confiança não pode ser reduzida a falar a verdade. Ela é fruto de uma postura aberta a acolher as dificuldades e os sentimentos da infância, muitos dos quais podem parecer irrelevantes na vida adulta.
  4. O exemplo é uma história que a criança consegue assimilar. E pode ser um antídoto poderoso. Identifique os comportamentos mais problemáticos da criança e procure correspondência nas suas próprias ações. Investigue a fundo. E então crie oportunidades para mostrar a sua mudança. 
  5. Educar para a diversidade é estar consciente do papel nocivo dos modelos normativos. Se você quer uma educação que potencialize a capacidade empática das crianças, comece por exercitar a sua, reconhecendo seus privilégios e sendo intolerante com as violências cotidianas direcionadas a pessoas e grupos minorizados.

A parentalidade é uma oportunidade de crescimento pessoal, transformação social e imaginação do futuro. Precisamos aprender a aprender mais com ela.

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Diva. United by difference.


Marcelo Téo é co-fundador da Diva Inclusive Solutions, pesquisador, educador, produtor de conteúdo, músico e pai. Suas pesquisas dentro e fora do âmbito acadêmico estão voltadas para o consumo narrativo e o papel da diversidade de histórias no desenvolvimento da empatia.