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PODERES E PERIGOS DAS HISTÓRIAS DE NINAR

PODERES E PERIGOS DAS HISTÓRIAS DE NINAR

Por Marcelo Téo

TEMPO DE LEITURA: 10 MINUTOS

Você já parou para pensar sobre as histórias de ninar que você conta para sue(s) filhe(s)? Eu já escrevi em outros artigos sobre o fato de sermos animais contadores de histórias. Contar e ouvir histórias são traços que nos constituem como humanos. Também já disse em outras oportunidades que as histórias são formas de poder. Elas constituem a nossa subjetividade. O nosso gosto, o nosso olhar, a nossa autoestima, a nossa capacidade de sonhar: tudo é afetado pelas histórias que consumimos. A célebre escritora Chimamanda Adichie nos alertou, numa TED Talk muito conhecida, sobre os efeitos de uma infância pobre em termos de diversidade narrativa na vida adulta. 

Crianças, adultos e as narrativas da convivência 

As crianças, sobretudo na primeira infância (até os 7 anos), estão expostas a histórias o tempo todo. Não apenas aquelas que escolhemos contar na hora de dormir. Mas toda uma rede de narrativas que vão da onipresença da publicidade às nossas redes de relacionamento. 

Histórias, como música, são feitas com repetições organizadas (ritmo ou storytelling). Isso nos ajuda a assimilar essas informações, a compreender – de forma objetiva ou subjetiva – que existe uma intenção por trás daquela informação. Por isso a rotina e a recorrência têm um poder enorme na constituição das nossas subjetividades, dos nossos “painéis narrativos”. 

Ao expor nosses filhes a “histórias únicas”, como chamou a atenção Chimamanda Adichie, referindo-se à falta de diversidade narrativa, estamos limitando seu repertório e a sua capacidade de contar e ouvir histórias que contemplem a complexidade da realidade e a pluralidade das identidades.

Crianças são, como se costuma dizer, verdadeiras esponjas. Elas absorvem muita informação. E, tendo um repertório ainda restrito de referências sobre a vida e o mundo, compreendem o que vêem, ouvem ou sentem de forma bastante lúdica e individual. Muito embora ainda não consigam entender o que é racismo ou transfobia enquanto conceitos, são perfeitamente capazes de internalizar experiências de preconceito ou de acolhimento como referências subjetivas que serão requisitadas cedo ou tarde. 

Se na vida adulta, conseguimos praticar a hipocrisia com certa facilidade, verbalizando, por exemplo, que somos anti-racistas, mas seguir tirando proveito dos privilégios da branquitude, ao nos relacionarmos com crianças, essas contradições perdem sua validade. Para elas, pouco importa o que você fala. Conta muito o que você faz, repetidamente. 

Fundo branco com duas crianças, uma branca e outra negra usando máscaras de papel em tons de rosa e azul claros em referência ao tema das histórias de ninar.
Foto de Artem Podrez do Pexels.

Nossas ações também são histórias. Se você só vai a médicos e dentistas branques, seu círculo de amizades é essencialmente branco, na escola, professories e gestories são branques, mas ês profissionais da limpeza são mulheres negras, o que você acha que sues filhes estão aprendendo sobre a negritude no Brasil? 

O efeito dessa rede de cumplicidade entre pessoas brancas e de exclusão de pessoas negras ou indígenas, que chamamos de racismo estrutural, é ainda mais devastador quando se trata de crianças não brancas.

Histórias que se repetem inúmeras vezes, nas telas e na vida real, acabam construindo muros físicos e mentais que limitam a nossa performance social. Não nos permitimos sonhar fora deles. 

Quando uma mãe negra desestimula uma filha que quer estudar, ela não o faz por ignorância ou maldade, mas porque as narrativas que moldaram sua percepção do mundo mostraram que esse caminho não era apropriado para pessoas como ela. Esse sistema cruel e invisível de exclusão sempre foi muito conveniente à população branca. E mudá-lo ainda é motivo para muita resistência.

Em suma, nosso comportamento social é lido pelas crianças desde muito cedo. Apesar dos limites da compreensão infantil, ações repetidas se encarregam de estruturar conexões cerebrais que podem durar uma vida. Estar ciente disso é algo muito valioso. Sobretudo porque desperta a nossa atenção para práticas pessoais tidas como naturais e que, de repente, ao trazê-las para consciência, evocam um despertar crítico: o reconhecimento do privilégio. E isso não é um fardo. Nem torna as nossas dores pessoais menores ou insignificantes. Apenas nos estimula a agir diferente, a perceber a realidade de forma mais empática. E, principalmente, a tomar o controle da nossa própria história, a qual repercutirá, cedo ou tarde, na vida de nosses filhes.

Fundo azul com uma menina negra de tca rosa lendo um livro no chão.
Foto de Amina Filkins do Pexels.

As histórias de ninar

Dentro dessa linha contínua que é o cotidiano da parentalidade, o momento que prepara o sono com histórias de ninar é muito valioso. Para além das histórias, existe um senso de aconchego, uma troca de afeto que é muito valiosa. Muitas crianças anseiam por esse momento, sobretudo porque as histórias são uma oportunidade de extrapolar a realidade, muitas vezes dura e árida, especialmente em tempos de pandemia. A fantasia torna-se um adereço da realidade, algo que a torna mais atraente. O exercício da imaginação fantástica na mente infantil é uma fonte rica de prazer e deleite. Tudo isso reforça o peso das histórias de ninar na memória. 

Eu tenho lembranças muito vivas de referências literárias da minha infância – Marcelo, marmelo, martelo de Ruth Rocha e A bolsa amarela de Lígia Bojunga Nunes são as principais – e venho observando esse processo com minhas filhas. Histórias de ninar, muitas vezes, são assuntos que vão e voltam ao longo dia seguinte. Aparecem em desenhos, são usadas como referência para entender assuntos estranhos à sua compreensão, inspiram brincadeiras e servem como precedente para situações de conflito. 

Eu sempre gostei de inventar histórias. E passei a usá-las como aliadas em momentos desafiadores. Na fase de chorar para escovar o dente, a história da minhoca dentista que cuidava dos problemas de bafo e dor de dente dos bichos da floresta ajudou muito. Foram dezenas de capítulos que eu queria ter registrado. Na hora de dormir também. Minhas duas filhas são do tipo agitado, que custam a pegar no sono. Então eu comecei a contar histórias de luz apagada. Para estimular o relaxamento. O delas e o meu (muitas vezes levei um chacoalhão porque peguei no sono no meio de uma frase).

Foram dezenas de histórias ao longo dos anos, sempre misturando fantasia com realidade cotidiana, estimulando habilidades que eu entendia como necessárias a cada fase: o diálogo e a calma para resolver conflitos e mudar comportamentos, o respeito à diferença, a familiaridade com modelos diversos de amor, de família, de amizade. 

Bruxos malvados que, ao se apaixonarem por um bruxo gente boa, resolvem mudar de rumo. Super-heroínas sem super-poderes que conseguem vencer grandes desafios através da capacidade de conversar e ouvir, de ser gentil e evocar a gentileza. Animais que personificam valores e ajudam a explicar a complexidade das relações humanas. Sagas dedicadas a explorar o valor da pluralidade na nossa constituição enquanto seres humanos. Nessas histórias, o protagonismo feminino é bastante comum. E dentro do espectro das feminilidades, há muita diversidade disponível: bruxas matriarcas casadas com outras bruxas, meninas que nasceram menino, personagens não-binários, protagonismo para personagens negras, indígenas ou pessoas com deficiência. 

Menina com turbante e olhos grandes com fundo cheio de plantas
Foto de Misha Voguel do Pexels.

Essas narrativas podem ser simplesmente adaptações de histórias já conhecidas. Ou versões fantásticas do cotidiano, com animais falantes e planetas coloridos. Podem servir como ilustração para assuntos delicados e necessários. Nada que exija grandes talentos literários. O fundamental é compreender a complexidade das relações dentro do campo da diversidade. 

É muito comum alimentarmos nosses filhes com narrativas politicamente corretas – que vão de histórias de princesas feministas a bonecas de pele escura – sem levarmos essa preocupação para outros campos da vida. E aí a eficácia dessas ações simbólicas é muito pequena. Mas quando a consciência sobre um problema começa na vida prática, na experiência do cotidiano, ela transborda mais facilmente para outras dimensões. 

Se você entende o que é privilégio, de verdade, então você consegue exemplificar para uma criança através de uma história que as oportunidades nem sempre são iguais e que, portanto, lógicas meritocráticas ou capacitistas são parte de uma estrutura de reprodução da desigualdade. O mesmo vale para as possibilidades de gênero: ir além da binariedade, do sexismo e da cisgeneridade nas histórias deve ser consequência de uma busca anterior dos pais para entender quais as implicações práticas do respeito à pluralidade de gênero. E assim por diante. 

Diversidade narrativa, habilidade criativa

O que vale para os livros, para as histórias inventadas, vale também para os desenhos e filmes. Vale para a infância, a adolescência e a vida adulta. Vale para a escolha das instituições educacionais, da escola a outros serviços (como aulas de inglês, esportes, artes etc.). E vale para as decisões cotidianas que resultam em narrativas aos olhos das crianças, como falamos no início do texto. São detalhes aparentemente insignificantes. Mas que, com o tempo, fazem aflorar a sensibilidade infantil, ampliando a capacidade para entender que a vida é um jogo de possibilidades e que o modelo familiar ou modelos normativos dominantes não podem ser entendidos como padrão único a ser seguido. 

A energia da infância, que muitas vezes é canalizada para resistir à pluralidade, pode ser melhor aproveitada num ambiente que estimula a curiosidade para entender o que é diferente e assume a diversidade como um combustível da vida. 

Essa habilidade, no médio prazo, desdobra-se em diversas outras, que incluem fluência criativa, alta performance social, construção de patrimônio afetivo, capacidade para vislumbrar caminhos e liderar processos de mudança. Pode parecer exagero, mas não é. Ao estimular a sensibilidade para compreender a diversidade desde a mais tenra infância através das histórias, estaremos preparando nosses filhes para lidar com a imprevisibilidade da vida, diminuindo o seu tempo de resposta às adversidades decorrentes dela. 

Menino negro sentado na cama escrevendo em um caderno em referência ao tema das histórias de ninar.
Foto de Katerina Holmes do Pexels.

A educação normativa gerou traumas individuais e coletivos bastante visíveis. A homofobia, por exemplo, é estimulada em grande medida pela incapacidade dos homens criados nesse modelo de educação parental para reconhecer e assumir a legitimidade de seus próprios desejos sempre que estejam em desacordo com as expectativas da cisgeneridade e da heteronormatividade. O ódio ao outro é, muitas vezes, a repulsa aos nossos próprios desejos. Nesse sentido, educar para a diversidade é educar para o respeito em vez do trauma. É educar para transformar o mundo em vez de aceitar o impacto nefasto de seus modelos desiguais. Educar para amplificar o acolhimento e a potência das diferenças. É, enfim, educar para imaginar e construir um futuro onde caibam todes, com sua diversidade de experiências, corpos e culturas.

Educar para a diversidade pela via das experiências e das histórias é amplificar a potência da infância, seja para empoderar nossas crianças, seja para transformar o presente, ou ainda, para imaginar um futuro menos árido e apocalíptico. A diversidade de histórias não é um cartão postal, algo que se possa adquirir na livraria. Ela é consequência de uma postura parental (e des educadories) sensível às desigualdades e às responsabilidades que temos no trato com crianças. 

Ela também é uma promessa de mudança que conecta muitos dos anseios da parentalidade e das instituições educacionais. Desejamos que as crianças sejam “do mundo”, ou seja, que tenham habilidade e desenvoltura para lidar com a pluralidade. Esperamos que as crianças sejam autônomas na construção de sua vida afetiva. Queremos que sejam cidadãs conscientes. Que sejam empáticas e alimentem relacionamentos saudáveis em casa, na escola, na vida. Que sejam criativas, livres e inovadoras. Que ajudem a mudar o mundo para melhor. E o zelo por uma experiência da infância rica em diversidade é parte essencial do caminho para alcançar esses objetivos. Sobretudo porque só vai acontecer num contexto em que pais, educadories, gestores educacionais e instituições trabalhem juntes para que essa experiência seja plena, profunda e verdadeira. Sem exemplos reais, nosses filhes e alunes seguirão enfrentando o “desafio da diversidade” ao invés de desfrutar toda a sua potência transformadora.

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Diva. United by difference.


Marcelo Téo é co-fundador da Diva Inclusive Solutions, pesquisador, educador, produtor de conteúdo, músico e pai. Suas pesquisas dentro e fora do âmbito acadêmico estão voltadas para o consumo narrativo e o papel da diversidade de histórias no desenvolvimento da empatia.