TEMPO DE LEITURA: 7 MINUTOS
Há algum tempo sinto uma necessidade imensa de conversar. Eu convivo muito bem com o silêncio. E moro com três pessoas maravilhosas que preenchem minha vida. Mas confesso que ultimamente essa necessidade cresceu muito. Na pandemia, sentimos falta de ver pessoas queridas, de conhecer pessoas, de construir novas relações. E o ambiente digital acaba suprindo algumas dessas necessidades. De uma forma bem precária, é verdade. Com os percalços do diálogo. Mas ajuda.
Eu não me sinto muito estimulado com as redes sociais fora do âmbito profissional. Por isso acabei me apegando mais aos livros, criando novos espaços no dia para conversar com autories que abordam temas do meu interesse. Não só no âmbito profissional, mas também pessoal. Minhas leituras circulam entre campos de interesse bem distintos e eu vou juntando tudo, tentando aplicar alguns aprendizados, cruzando ideias e formando outras novas.
Retomar esse hábito foi um presente da pandemia. Tem me ajudado muito a manter a sanidade, a lidar com o desânimo e com a ansiedade de ser produtivo. Quando tudo parece uma bosta, paro e escolho um livro pra ler. O problema é que ler tem um efeito colateral: estimula sua necessidade de interação social, ao mesmo tempo em que te ajuda a lidar com a falta dela.
Parecia uma solução pro silêncio da pandemia. Só que não. Mas eu acredito que um dos valores da leitura é trazer verdades inconvenientes, permitindo que a gente cresça fazendo dos limões saborosas limonadas. Decidi, então, compartilhar no meu Instagram pessoal uma espécie de diário de leituras: sugestões de livros, dicas para criar o hábito, para administrar o tempo de forma que sobre espaço para ler, dicas para ler mais, para ler com as crianças, pra ler muitas coisas ao mesmo tempo, pra ler alguma coisa. Tudo isso com foco num tema que me é muito caro: as bolhas digitais e as relações entre tecnologia, desigualdade e empatia. A ideia era tirar desse silêncio inquietante alguma voz que valha a pena ser ouvida e que me ajude a lidar com os “percalços do diálogo” acima mencionados.
Depois de duas ou três semanas, nossa equipe na Diva percebeu que talvez fosse o caso de trazer essas reflexões para o Journal no nosso site, já que o tema vai ao encontro da nossa missão. E aqui estamos nós. Com essa nova coluna – intitulada Break the bubble. E nessa primeira postagem, já publicada no Instagram numa versão mais resumida, decidi falar sobre algo que vem me incomodando há algum tempo: a dificuldade de estabelecer diálogos produtivos quando conversamos sobre temas polêmicos.
Eu sempre usei a leitura para me ajudar a resolver equações na minha cabeça. Leio pouca literatura (menos do que deveria, pelo menos) e nunca fui muito chegado em leituras do segmento auto-ajuda. Na maior parte do tempo, elas tinham relação com minha vida profissional.
Em algum momento da pandemia, esse perfil de leituras começou a mudar. Passei a buscar nos livros algum suporte para questões pessoais, que vão da educação infantil a padrões da masculinidade, da branquitude à vulnerabilidade. Sempre leio várias coisas ao mesmo tempo – tema que retendo abordar em breve, aliás – e recentemente me apeguei a um livro em especial, sobre o qual quero dividir com vocês algumas impressões. A leitura não é das mais fáceis, mas também não é cifrada. Não vou resumir livros aqui. Mas tentar inseri-los dentro de um panorama de debates atuais, que nos ajudem a aprofundar nossa compreensão de problemas reais, de questões do nosso presente que, de alguma forma, dizem respeito a todes nós. Vou me ater a quatro pontos que considero suficientes pra dizer porque esse livro vale a pena: o contexto (1), o problema (2) que me levou ao livro (3) e a resposta (4) que o autor oferece.
O (meu) contexto: As discussões sobre o Brasil e a política ganharam muito espaço nas conversas de praticamente todas as famílias e círculos de amigues. Infelizmente, não porque estamos mais alfabetizados na gramática política, mas porque o campo se transformou numa arena polarizada. E não apenas entre conservadores e progressistas, direita e esquerda, onde o diálogo decresce cada vez mais, mas também dentro de círculos progressistas, onde, em tese, existem anseios comuns, contrários, em alguma medida, ao projeto genocida e fascista levado à cabo pelo monstro que hoje ocupa o cargo de presidente.
O (meu) problema: Nos diversos grupos que participo, tem se tornado cada vez mais comuns embates estéreis onde impera uma certeza inabalável: “Cedo ou tarde você vai perceber que estás enganado e eu estou certo”. Não importa o que você fale. Não importa o esforço para fazer perguntas e estimular a reflexão, a dúvida, a troca. Nada muda. Saí de muitas dessas discussões decepcionado, me sentido, muitas vezes, subestimado e quase sempre com uma sensação de dúvida muito forte: o que leva as pessoas a terem tanta certeza?
O livro: Eis que nas páginas finais de um livro que estava lendo encontrei a menção a um estudo neurocientífico sobre a “sensação de saber” e a “convicção”, de autoria de Robert A. Burton, lançado pela editora Blucher: “Sobre ter certeza: como a neurociência explica a convicção” (2017). Na obra, Burton se dedica a desfazer o mito de que “sabemos o que sabemos” através de deliberações conscientes. Mostra, com exemplos diversos, como nosso cérebro cria sensações involuntárias de saber que são afetadas por “tudo”: desde predisposições genéticas até “ilusões perceptivas comuns a todas as sensações corporais”. O autor explica, de forma surpreendente, como é irracional essa nossa “sensação de saber” que está no centro dos principais dilemas contemporâneos.
A resposta: Imagine uma dessas conversas onde jogamos argumentos umes sobre es outres de forma reativa. As opções em geral são: concordar ou discordar. E esse processo, como mostra Burton, mobiliza uma série imprevisível e incontrolável de variáveis. Essa sensação de saber funciona como um reflexo. E antes mesmo de ouvirmos o final da história, já estamos prontos para fazer correções e contraposições. Burton nos estimula a imaginar uma conversa onde não somos impelidos a responder, desfrutando o “luxo do tempo de processamento mais lento”. Essa desaceleração substitui o reflexo da sensação por uma percepção mais consciente. E aí fica fácil perceber a “superficialidade, as evasivas e a falta de uma real troca de ideias na maioria dos diálogos”.
Ele cita, entre outros exemplos, o caso de rebatedores de beisebol, cuja reação ao lançamento precisa ser muito rápida para dar conta de acertar a bola que viaja numa velocidade de, em média, 150 km/h. Apesar de muitos rebatedores famosos tentarem explicar, ao longo da história, qual a fórmula para tantos home runs, o que de fato acontece é algo que foge ao seu controle. O tempo que a bola leva para chegar ao rebatedor é menor do que o tempo que o cérebro leva para processar a informação, exigindo que a reação seja mais um reflexo, que se dá na comunhão de vários fatores – genéticos, sensoriais etc. – do que algo pensado ou premeditado.
O exemplo é apenas uma ilustração para insinuar que, em debates acalorados, sempre que nos precipitamos em reagir, acabamos construindo argumentos praticamente isentos de reflexão real. Usamos mais jargões e pensamentos-reflexos que pouco contribuem para gerar conhecimento ou novas percepções aos participantes da conversa.
O problema reside no que ele chama de “fisiologia da conversa”. Quando passamos de observadories silencioses a discutidories reatives nos enrolamos num problema de processamento, onde o pensamento segue o fluxo das sensações. A sensação de saber vai ser desencadeada antes da percepção completa da ideia, mas será sentida como se tivesse ocorrido depois, criando a segurança da certeza e garantindo nosso sono.
Mas essa garantia vem com um preço. A sensação de vitória, o sentir-se pleno, maquia uma verdade um pouco mais complexa e desagradável: sem diálogo, somos sufocados pela ignorância, e corremos o risco de nos perdermos na solitária e enganosa certeza da superioridade. O diálogo, mais do que uma competição, é um momento de comunhão. E mesmo o mais sábio dos mortais deve ter o compromisso de, ao dialogar, estar aberto para aprender. Super recomendo a leitura.
Nos lemos por aqui.
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Break the bubble.
Diva. United by difference.
Break The Bubble é uma coluna dedicada a falar sobre as relações entre empatia e tecnologia, através de uma curadoria comentada de livros, filmes e outras narrativas.
Marcelo Téo é co-fundador da Diva Inclusive Solutions, pesquisador, educador, produtor de conteúdo, músico e pai. Suas pesquisas dentro e fora do âmbito acadêmico estão voltadas para o consumo narrativo e o papel da diversidade de histórias no desenvolvimento da empatia.