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A CULTURA DO CANCELAMENTO E O PESO DA ESTRUTURA

A CULTURA DO CANCELAMENTO E O PESO DA ESTRUTURA

Por Marcelo Téo

TEMPO DE LEITURA: 5 MINUTOS

A expressão “cultura do cancelamento” – em inglês “cancel culture” ou “call-out culture” – vem ganhando mais e mais destaque. Não apenas a expressão, mas sobretudo as práticas de cancelamento. Sintoma preocupante de uma nova ética de sociabilidade, característica dos ambientes digitais, mas que, sem dúvida, vem vazando para a vida analógica, influenciando-a de forma avassaladora. 

No Brasil, o cancelamento ganhou destaque ainda maior após a última edição do reality show Big Brother Brasil (BBB21), quando Karol Conká e sues companheires de jogo foram eliminades com recordes de rejeição e cancelades aqui fora no “mundo real”. 

fundo vermelho com foto de mulher negra.
Karol Conká foi cancelada durante e após a participação no BBB 21 por ter se envolvido em vários conflitos desde a primeira semana do programa.

O medo de “ser cancelade” é um sentimento comum entre pessoas que, em alguma medida, têm uma vida pública. E a cultura do cancelamento em si, apesar do caráter corretivo, muitas vezes eficaz no combate a ações homofóbicas, transfóbicas, capacitistas, racistas etc., já causou males irreparáveis – entre eles o suicídio – aos seus alvos.

Alguns casos de cancelamento com foco na denúncia ou na contestação de vereditos formulados por uma elite privilegiada com acesso irrestrito aos meios de comunicação instigaram o aparecimento de reflexões muito potentes sobre o empoderamento de uma massa historicamente cancelada que, agora, conquista o poder de cancelar. O que de fato é verdade. Ou, pelo menos, uma meia verdade.

O impacto de polêmicas como o embate entre Djamila Ribeiro e Preta Parks sobre colorismo, ou aquela em torno do texto de Lilia M. Schwarcz publicado na Folha de São Paulo sobre Beyoncé, certamente serviram de gatilho para um debate mais amplo sobre branquitude e racismo estrutural na mídia brasileira. Some-se a isso o crescente impacto das políticas de diversidade no mercado financeiro e temos aí alguns dos principais meios de comunicação do país iniciando os primeiros movimentos rumo à inclusão. Mesmo que sejam passos rígidos e lentos, como os de um gigante há muito adormecido e que acaba de despertar.

Mas se pensarmos um pouco além, e incluirmos os impactos dessa dita “cultura do cancelamento”, as impressões podem mudar um pouco. Alguns livros e publicações têm explorado essa questão. Mas ainda deixam a desejar quando apelam para uma crítica aos identitarismos e às chamadas “patrulhas ideológicas”, explicando o problema a partir de um suposto policiamento excessivo por parte de grupos minorizados. Usam como exemplos exceções fora de contexto, como acusações de racismo equivocadas, colocando em risco a atuação importante de movimentos dedicados ao empoderamento e à proteção de grupos e indivíduos fragilizados em função de uma estrutura excludente.

Temos, de um lado, a distribuição de poder para grupos historicamente “cancelados” e que, agora, têm o poder de cancelar. De outro, o impacto psicológico e social dessas práticas, que cultiva uma cultura de ódio e aversão ao diálogo, estimulando o uso da violência e a polarização nas performances políticas do cotidiano.

Como se não pudesse haver ativismo e crítica sem o uso da “força” e o assédio moral.

Explicar essa segunda dimensão através da chave do dito “identitarismo” é um erro grave. Primeiro porque ao fazê-lo, ignoramos que sobre os grupos minorizados recai o peso das estruturas, construções históricas que sustentam o funcionamento da sociedade e da desigualdade. E o teor dos cancelamentos pode apresentar níveis bastante distintos. Mulheres negras e pessoas trans, por exemplo, são muito mais vitimadas por quaisquer deslizes ou por simplesmente serem quem são, sofrendo com ameaças gravíssimas, perseguições físicas e digitais, entre outras consequências para além do cancelamento nas redes sociais (perda de seguidores). 

Já homens brancos cisgêneros e heterosexuais costumam receber um tratamento bastante distinto e muito mais ameno. O caso mais recente do DJ que espancou a esposa e ganhou cerca de 200 mil de seguidores é um exemplo esdrúxulo. O caso de Rodolfo Matthaus, ex-BBB, é um bom exemplo. Apesar das cenas de homofobia e racismo, o cantor saiu ileso do programa. Apesar das críticas, cresceu em popularidade e alcançou as alturas nas paradas de sucesso com a canção “Batom de cereja” lançada quando ainda estava confinado no reality. 

Karol Conká foi arduamente cancelada nas redes sociais, enquanto Rodolfo Matthaus se promoveu mesmo depois de falas racistas e homofóbicas.


Karol Conká e Lumena Aleluia, ou mesmo Nego Di e Projota, pessoas negras, não tiveram a mesma sorte, mesmo que não tenham protagonizado nenhuma ação de racismo ou homofobia. Foram julgades, sobretudo as mulheres, por atos individuais, respostas pessoais aos dilemas da interação num contexto delicado de confinamento. A mídia vem explorando a questão meses depois, sobretudo o caso de Conká, que mobilizou o Brasil num movimento de rejeição e violência contra a cantora. Foram sucessivos pedidos de desculpa e justificativas individuais. Já Rodolfo não precisou passar por nada disso. 

Assim como esse, são inúmeros outros casos com diferentes variáveis: ameaças de morte, demissões, censura nas redes sociais, e muita terapia do lado des cancelades. O trauma dessas situações vem sendo gatilho para doenças psicológicas e ações radicais que incluem o suicídio. 

O fato é que, ao criticar a chamada “cultura do cancelamento”, precisamos estar atentes ao impacto das estruturas de opressão, ao seu impacto desproporcional entre os grupos minorizados.

Do contrário, estaremos apenas aproximando os discursos progressista e conservador a partir de uma postura carregada de branquitude e patriarcado, contribuindo mais para a banalização das causas identitárias, fundamentais à transformação social, do que para a construção de novas formas de diálogo, mais sensatas, acolhedoras e democráticas, nos espaços digitais. 

Como bem nos lembra a filósofa (e uma das maiores intelectuais brasileiras), Sueli Carneiro, “entre esquerda e direita, continuo sendo preta”. A tagline serve para outras minorias cuja existência carrega o peso desproporcional de marcadores de opressão que, além de minar suas oportunidades, estão aparelhados por mecanismos cruéis e violentos de vigilância e punição.

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Diva. United by difference.


Marcelo Téo é co-fundador da Diva Inclusive Solutions, pesquisador, educador, produtor de conteúdo, músico e pai. Suas pesquisas dentro e fora do âmbito acadêmico estão voltadas para o consumo narrativo e o papel da diversidade de histórias no desenvolvimento da empatia.