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LITERATURA & DIVERSIDADE: ENTREVISTA COM O ESCRITOR ANDRÉ TIMM

LITERATURA & DIVERSIDADE: ENTREVISTA COM O ESCRITOR ANDRÉ TIMM

Por Marcelo Téo

A ficção é um espaço para ler, adaptar, interpretar o mundo. E projetá-lo também, no formato de utopias. A leitura é um momento de escuta, onde nos colocamos à disposição des autories, sob o mais absoluto silêncio. Cada palavra, cada frase vai formando imagens mentais, que variam enormemente de leitore para leitore. Cada personagem adquire forma física, caráter, e desperta em nós reações muito parecidas com as que temos com pessoas ou histórias verídicas. Sentimos raiva, simpatia, atração, pena, alegria. A questão é que o efeito das histórias sobre nós é imenso. As pílulas de realidade contidas nas dezenas ou até centenas de narrativas que consumimos mensalmente somam-se a outras experiências de interação direta, ajudando a formar o nosso olhar, a nossa percepção. 

Durante a pandemia, nossas interações físicas estão muito reduzidas. E a nossa vida digital está muito expandida. Nosso lazer, nosso consumo de conteúdos, os processos de aprendizado, o consumo: tudo migrando progressiva e rapidamente para o digital. 

Em suma, a maior parte das nossas interações com o mundo estão acontecendo através de narrativas acessadas digitalmente. E na maioria dos casos, curadas de forma automatizada por algoritmos dedicados exclusivamente a ganhar a nossa atenção, a qualquer custo.

Ora, nós escolhemos nosses amigues. Escolhemos as pessoas cujas histórias queremos ouvir, compartilhar e participar. E esse poder de escolha nos molda e nos faz crescer.

Abrir mão do direito de escolher as histórias que consumimos é algo muito sério. É comprometedor, pois coloca em risco a nossa agência, a nossa liberdade e o nosso desenvolvimento enquanto seres humanos capazes de agir com empatia, capazes de imaginar futuros mais justos e mais acolhedores.

A diversidade nas histórias que consumimos é uma super vitamina. Precisamos muito dela.

E foi pensando nisso que resolvemos conversar com autories que, em alguma medida, mostrem algum interesse nessas questões. O primeiro delus é André Timm, autor de “Morte Sul Peste Oeste”, um drama que tem como protagonistas um homem negro imigrante e uma menina trans. A história levanta questões muito caras aos debates sobre diversidade na atualidade, de uma forma muito fluida e provocante. Seguem abaixo os highlights da nossa conversa. 

Retrato em preto e branco do escritor André Timm. Ele olha para a câmera com uma mão no queixo. Ele usa camiseta preta e um relógio da marca Apple. O fundo é preto e a luz é dramática.


Diva: A escritora nigeriana Chimamanda Adichie falou, numa famosa palestra no TED, sobre os perigos da história única, chamando a atenção para os efeitos de uma literatura/ficção carente de diversidade no imaginário de populações minorizadas. Morte Sul Peste Oeste é um exemplo de como contornar essa situação, especialmente quando se trata de um escritor como você, homem, branco, cisgênero e heterosexual. Você pode compartilhar com a gente o que te levou a escolher essa temática?

André Timm: São diversos aspectos que pautam a escolha de que história se decide narrar. Eu não parto necessariamente das temáticas, mas de personagens. Penso que isso é importante porque leva à criação de narrativas que, de alguma maneira, são mais verossímeis e consistentes porque são resultado de um sintoma e de minhas percepções sobre o mundo. O que quero dizer é que eu não escolhi contar uma história sobre imigração e transexualidade. Esses personagens surgiram em mim porque são uma questão latente no mundo hoje. Nesse caso, a literatura é sensível e sintomática. Isso posto, concordo com o ponto que Chimamanda levanta.

“Quando olhamos para o mosaico de personagens da literatura contemporânea brasileira, as populações minorizadas são também minorizadas na ficção”.

E aquilo que não é visto, falado, comentado não é normalizado. Esse é um ponto crucial. É preciso um movimento duplo. Ao mesmo tempo em que se faz necessário haver maiores condições para que pessoas de populações minorizadas contem suas próprias histórias, é preciso que nós, responsáveis pelo problema, estejamos abertos para contar as histórias que nosso tempo pede. Na condição de homem branco cis hétero, com acesso e trânsito pelo mercado editorial, ainda que mínimo comparado a outros autores, faz bem para a cena que eu me permita narrar as historias desses personagens que estão para além da minha bolha.

Diva: Conhecendo a cidade de Chapecó, seu perfil conservador, fico curioso sobre como tem sido a repercussão da obra? Certamente existe resistência ao diálogo. Mas você consegue perceber também os efeitos positivos que uma obra como a sua cria em âmbito local? E como percebe isso reverberando fora?

André Timm: A repercussão tem sido moderada, muito provavelmente porque o livro só chega àqueles que, de fato, se interessam por literatura e pelas temáticas que o livro aborda. Entre os que leram, e não necessariamente só aqueles da região do Oeste Catarinense, muitas vezes o retorno tem sido de compartilhar a surpresa de conhecer uma realidade que diziam não saber ser tão árdua, especialmente em relação aos imigrantes haitianos. E nesse sentido, é inevitável não traçar um paralelo político quando pensamos na relação entre o atual governo e pautas como xenofobia, transfobia, misoginia e assim por diante.

recorte de postagens em redes sociais com depoimentos xenofóbicos, pedindo que mandem imigrantes para fora do país.


É preciso lembrar: Bolsonaro foi o mais votado em 266 das 295 cidades de Santa Catarina. Em Chapecó, ele obteve quase 65% dos votos. Naturalmente, nem todo eleitor de Bolsonaro compartilha dessas posturas. Por outro lado, é inegável que muitos de seus seguidores endossam esses posicionamentos e inclusive o admiram por isso. O frenesi com expressões como “sou homofóbico, sim, com muito orgulho” ou aquela que afirma que os imigrantes são “a escória do mundo” estão aí para comprovar. Também podemos lembrar que Santa Catarina é um estado que abriga inúmeras células adormecidas (e agora nem tão adormecidas assim) de organizações neonazistas. Das que se tem conhecimento, são 334 no Brasil, sendo 69 delas só em Santa Catarina. Diante desse cenário tão perigoso, penso que o livro encontra um momento propício para as discussões que levanta, ainda que através da ficção.

recorte de postagens em redes sociais com depoimentos xenofóbicos, pedindo que mandem imigrantes para fora do país.


Diva: Existe algo nas obras de ficção que captura a nossa atenção, quase como uma hipnose. Eu percebo esse fenômeno como uma capacidade essencial des escritories de esconder as engrenagens, criando uma fluidez que parece confundir a leitura com a experiência do leitor. Em “Morte Sul Peste Oeste”, essa fluidez é deliciosa. Mas acho importante lembrar que essas engrenagens existem. Não compreendê-las faz com que, muitas vezes, subestimemos o trabalho des autories. A pesquisa, o constante estado de alerta, o desenvolvimento da sensibilidade, da empatia, a percepção etnográfica do mundo e das culturas, incluindo a sua própria. Enfim, a lista é longa. No seu caso, especialmente nesta obra, o nível de detalhe da pesquisa, a profundidade da compreensão acerca de grupos dos quais você não faz parte, pequenas curiosidades perdidas numa pequena frase… É impressionante. Tenho muita curiosidade de saber um pouco sobre seu processo de pesquisa. Pode nos contar um pouco ele se dá?

André Timm: A melhor pesquisa é aquela que não aparece, exceto se essa for mesmo a intenção de quem escreve. Por exemplo, em meu romance anterior, Modos Inacabados de Morrer, a pesquisa cumpriu um papel narrativo mas também estético. Como o protagonista sofria de uma condição severa de narcolepsia, o romance trazia notas de rodapé científicas que versavam desde a posologia de medicamentos até descrições técnicas sobre o que acontece com alguém que se afoga. Em “Morte Sul Peste Oeste”, o objetivo era fazer com que a pesquisa se diluísse na narrativa. Ou seja, cumprir o papel de contribuir com a história, mas sem que parecesse gratuita ou descosturada do todo. Para alcançar esse resultado, recorri a diferentes fontes e métodos. Foram matérias de revistas, documentários, programas de tevê, livros, artigos jornalísticos e uma entrevista com um haitiano, e também com uma pessoa trans, que entrou na fase de leitura crítica do romance, com o intuito de averiguar se a personagem criada era verossímil e se nada destoava demais ou soava impreciso ou mesmo ofensivo. Trata-se de um processo de buscar um equilíbrio que nem sempre é fácil alcançar.

“Quem escreve ficção precisa da liberdade para narrar sem imposições e proibições, ao mesmo tempo em que deve estar imbuído de um senso de responsabilidade ao criar personagens que não correspondem ao seu lugar.”

Veja, não penso que deva haver restrições quanto ao lugar de fala na ficção. Mas justamente por isso, acredito que o cuidado precisa ser muito maior. Quem se aventura a experimentar perspectivas diferentes das suas, o que faz mesmo parte da natureza da literatura (a alteridade), precisa se esforçar para não incorrer em equívocos que, de alguma forma, sejam danosos às pessoas que correspondem às personagens retratadas.

Diva: Timm, quando acabei a leitura de Morte Sul Peste Oeste, fiquei com uma palavra em mente: empatia. Me parece que as suas descrições psicológicas des personagens quase sempre são construídas a partir de variáveis vinculadas ao conceito de empatia, seja pela sua presença ou pela sua falta. O conceito tem de fato alguma importância na sua construção de personagens? Você pode nos contar um pouco sobre esse seu processo?

André Timm: Acredito que o conceito de empatia tem um papel importante em Morte Sul Peste Oeste, de fato. Mais pela ideia de ausência do que de presença, que nesse caso, me parece que se estabeleça como consequência. Em certa medida, isso está ligado a certas técnicas narrativas. A partir do momento em que personagens como Dominique e Brigite são submetidos a uma série de revezes, é esperado que o leitor desenvolva por eles um nível de empatia. Embora esses tempos estranhos, às vezes, façam parecer que perdemos nossa humanidade, quero acreditar que essa é uma falsa sensação, porque a maioria das pessoas ainda são sensíveis e são tocadas diante do sofrimento de alguém, ainda que seja um sofrimento ficcional. Mas, veja, inclusive isso é paradoxal em nós. Ao mesmo tempo em que podemos nos compadecer de uma personagem que sofre nas páginas de um livro, somos capazes de ignorar o mendigo que passa fome e freio na calçada, como se fosse invisível.

recorte de postagens em redes sociais com depoimentos xenofóbicos, pedindo que mandem imigrantes para fora do país.


É difícil compreender toda essa nossa complexidade e nossas contradições. Ao mesmo tempo, isso tudo é que produz boa arte. Se fossemos plenamente compreensíveis e se fizéssemos sentido o tempo todo, não precisaríamos dela, da arte.  Acredito que há ainda uma outra dimensão da empatia, aquela que diz respeito ao próprio ofício do escritor. Precisamos exercitar a alteridade, nos colocarmos no lugar do outro. Nunca será uma experiência comparável ao que o outro sente, de fato, mas é possível emular um pouco disso com entrega e técnica. O autor precisa ser um pouco como o cavalo no candomblé, para usar uma figura de linguagem aqui. Precisamos nos deixar possuir, deixar baixar a personagem para tentar entender suas dores, motivações, desejos. E isso tudo demanda empatia.

Diva: As histórias que consumimos são parte importante de quem somos e do nosso porvir. Vivemos um momento de grande desequilíbrio narrativo. O que tem causado enormes déficits de empatia. Nos falta repertório para compreendermos e acolhermos a diferença. Como você enxerga esse problema do consumo narrativo, suas relações com o mercado editorial, com a literatura em si, com o ambiente digital?

André Timm: O desequilíbrio narrativo é consequência dos diversos tipos de desigualdades a que as pessoas estão sujeitas. No mercado editorial, por muito tempo, prevaleceram as vozes dominantes da sociedade e isso se reflete no mosaico de personagens e realidades que compõem a literatura brasileira. De bem pouco tempo pra cá, temos presenciado uma ascensão de importantes vozes de populações minorizadas. Ainda é pouco, ainda está muito distante de representar qualquer coisa que lembre igualdade, mas é o começo de um processo que precisamos lutar para que não pare. Algo nada fácil diante de governo e um presidente que, ainda em campanha, afirmava que as minorias deveriam se curvar diante das maiorias, pra citar apenas uma de suas falas.

Diva: Um recado para quem está prestes a ler seu livro e outro pra quem pensa em se tornar escritor hoje.

André Timm: Espero que Morte Sul Peste Oeste corte fundo para revelar o que há debaixo da pele. Para quem deseja escrever livros, aconselho que não seja muito duro consigo mesmo no princípio. Escrever não é fácil e demanda equilibrar sensibilidade, perseverança, disciplina, técnica. Só não desanime. Há originais demais nas gavetas por aí. Eles são mais úteis publicados.

André Timm segura dois de seus livros: Modos inacabados de morrer e Morte sul peste oeste. Ele veste máscara e camiseta ambas pretas. No fundo, prateleiras cheias de livros.

André Timm é natural de Porto Alegre e radicado em Chapecó (SC), desde 2004. É autor de Insônia (2011); Modos Inacabados de Morrer (2017), romance finalista do Prêmio São Paulo de Literatura e também publicado na Itália; E Morte Sul Peste Oeste (2020). Em 2018, venceu o Prêmio Off Flip, da Festa Literária Internacional de Paraty.

Marcelo Téo é co-fundador da Diva Inclusive Solutions, pesquisador, educador, produtor de conteúdo, músico e pai. Suas pesquisas dentro e fora do âmbito acadêmico estão voltadas para o consumo narrativo e o papel da diversidade de histórias no desenvolvimento da empatia.