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O BRASIL É INDÍGENA I: SOBRE A LUTA DOS POVOS ORIGINÁRIOS

O BRASIL É INDÍGENA I: SOBRE A LUTA DOS POVOS ORIGINÁRIOS

Por Marcelo Téo

TEMPO DE LEITURA: 11 MINUTOS

A importância de ouvir e apoiar a causa indígena não está apenas na preservação dos direitos constitucionais destas populações, mas na própria manutenção de um sistema que beira a falência. Não se pode falar em diversidade sem levar em conta a pauta indígena. Eles representam uma imensa parcela da diversidade cultural do nosso país. São responsáveis pela preservação de grandes áreas de floresta e carregam conhecimentos que a ciência ocidental ainda não é capaz de explicar ou mesmo compreender. Em suma, o Brasil é indígena.

Tendo em vista a sua importância e a grande diversidade de assuntos que envolvem a luta dos povos indígenas, dividimos nossa pauta em duas partes. Nesse artigo, preparamos um mapa de questões, debates, ações e desafios das populações originárias. Conversamos com especialistas, artistas e cineastas indígenas em busca de oferecer a você um bom roteiro para ficar por dentro das pautas e do valor destas populações que tanto tem à oferecer, mas que recebem tão pouco do poder público. Na segunda parte, falaremos sobre questões que nos ajudam a entender melhor alguns pontos comuns entre as culturas indígenas, como educação, epistemicídio, produção artística e audiovisual, ancestralidade e oralidade.

Populações indígenas no Brasil

Conforme o Censo de 2010, há 305 povos indígenas no Brasil, falantes de 274 línguas. É uma diversidade cultural imensa, porém desconhecida de muitos brasileiros. Como diz Gersem Baniwa, “não se pode respeitar o que não se conhece, ou pior, o que se conhece de maneira equivocada e pré-conceitualmente”. Segundo a professoras e pesquisadora dos povos indígenas Luisa T. Wittmann, o termo ‘índio’, tão difundido, é questionado pelos indígenas devido ao seu caráter genérico diante de tamanha riqueza de formas de ser. “Ser Munduruku, por exemplo, é muito diferente de ser Guarani ou Yanomami. No entanto, são todos eles povos originários, ou seja, que vivem em território que hoje é Brasil desde muito antes da criação das fronteiras deste Estado-Nação ou da chegada do primeiro homem branco em Abya Yala (nome indígena usado em contraponto à América, que homenageia um navegador italiano)”. 

“Não houve descoberta, mas invasão”.

Luisa T. Wittmann – pesquisadora das temáticas e das causas indígenas

Estima-se que, à época da chegada dos europeus, fossem mais de 1.000 povos indígenas diferentes, somando entre 2 e 4 milhões de pessoas. 

Se até meados dos anos 1970, acreditava-se que o desaparecimento dos povos indígenas seria algo inevitável, nos anos 1980, verificou-se uma tendência de reversão da curva demográfica e, desde então, a população indígena no país tem crescido de forma constante, indicando uma retomada demográfica e identitária por parte da maioria desses povos.

Muita terra pra pouco índio?

Atualmente 55% da população indígena no Brasil mora na área que chamamos de Amazônia Legal. Lá concentram-se mais de 98% das terras demarcadas. Os 45% restantes, quase metade da população indígena no país, detém a ínfima porcentagem de 1,58%, que abarca toda a região sul, sudeste, nordeste e partes do centro-oeste. Mas ainda se fala por aí que tem “muita terra para pouco índio”. 

Indígena com cocar de costas para a foto olha para uma paisagem exuberante à sua frente. Ao fundo outras pessoas fazem o mesmo.
Foto de Ubiratan Surui


Os estados do sul do Brasil – Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul – têm atualmente 91 terras indígenas, que ocupam 400 mil hectares da região, o equivalente a 0,7% da área somada dos três estados. Na região, as TIs têm em média 3.800 hectares e a população indígena vivendo em terras indígenas na região é de aproximadamente 60 mil pessoas, segundo dados do Instituto Sócio-ambiental (ISA).

É importante lembrar que as terras demarcadas são regiões protegidas e que garantem a vida das florestas sob os cuidados destas populações.

Entenda porque o agronegócio tem relação direta com o genocídio indígena

O reconhecimento dos direitos indígenas tem esbarrado, sobretudo, em um modelo de desenvolvimento econômico pautado pelo agronegócio. Um modelo que, apesar do relevo que ocupa na economia nacional, privilegia a concentração de terras e provoca a degradação ambiental. 

No Brasil, cerca de 60% dos 509 milhões de hectares de propriedades rurais cadastradas no Sistema Nacional de Cadastro Rural (SNCR) do INCRA em 2013, estão concentrados em menos de 2,5% dos imóveis rurais (Dados obtidos em https://terrasindigenas.org.br/pt-br/quem-sao). E o problema não para por aí. No Congresso, o lobby das grandes corporações, sustentadas pela chamada “bancada do boi”, para “passar a boiada” e aprovar projetos que intensificam o massacre indígena e a destruição ambiental é enorme. 

Alguns dados que podem te ajudar a refletir sobre a questão:

  • A agropecuária é a principal responsável pelo desmatamento e invasão de terras indígenas na Amazônia (fonte: Greenpeace).
  • De toda a soja produzida no mundo, 80% são utilizadas para alimentar animais (fonte: WWF-Brasil).
  • Abates por ano: 66,5 bilhões de Frangos. 1,48 bilhão de Suínos. 304 milhões de Cabeças de gado (Fonte: FAO/ONU).
  • Entre 2005 e 2015, a produção de gado foi responsável por 80% do desmatamento da Amazônia (Fonte: FAO-ONU).
  • Os pecuaristas e produtores de carne têm relações ‘estreitas’ (e nada ortodoxas) com o Legislativo (Fonte: Mercy for animals).
  • Pelo menos 25 projetos de lei que configuram ameaças aos direitos dos povos indígenas e quilombolas tramitam no Congresso (Fonte: De olho os ruralistas).
  • O Brasil é líder disparado no genocídio de índios na América Latina (Fonte: “O Mundo Indígena na América Latina – Olhares e Perspectivas” – livro).
  • Dos 312 defensores dos direitos humanos assassinados em 2017, 67% eram indígenas que protegiam suas terras ou direitos (Fonte: Front Line Defenders).
  • O número de registros de violências contra povos indígenas cresceu cerca de 150% no primeiro ano de governo Bolsonaro  (Fonte: Relatório do CIMI).

Foto de Edgar Kanayko


A natureza somos nós

Ailton Krenak, um dos grandes, entre muitos pensadores indígenas da atualidade, ao refletir sobre “o mito da sustentabilidade, inventado pelas corporações para justificar o assalto que fazem à nossa ideia de natureza”, nos lembra sobre a fratura que costuma-se criar entre a ideia de humanidade e a de natureza.

“Fomos, durante muito tempo, embalados com a história de que somos a humanidade. Enquanto isso – enquanto seu lobo não vem -, fomos nos alienando desse organismo de que somos parte, a Terra, e passamos a pensar que ele é uma coisa e nós, outra: a Terra e a humanidade”. 

“Eu não percebo onde tem alguma coisa que não seja natureza. Tudo é natureza. O cosmos é natureza. Tudo que eu consigo pensar é natureza”.

Ailton Krenak – Pensador indígena

É importante estarmos conscientes do papel das comunidades indígenas enquanto guardiões da terra. Seus territórios são redutos de proteção ambiental, verdadeiras escolas de sustentabilidade com as quais temos muito que aprender. Precisamos entender que os povos indígenas lutam não apenas pelo seu direito de existir. Lutam também por nós.

O atual governo e a causa indígena

Desde a colonização, vários foram os modelos de políticas indigenistas adotados pelo Estado Brasileiro: 1. o genocídio (eliminação ou escravização) e o etnocídio (catequese), adotados desde a chegada dos colonizadores; 2. o integracionismo, caracterizado pela concepção de que os povos indígenas possuem uma cultura inferior, devendo ser tutelados pelo governo para, posteriormente, serem “integrados” à sociedade brasileira; e 3. um terceiro modelo que inaugura-se com a Constituição de 1988, pautado pela luta por igualdade, respeito à diversidade étnica, pelo reconhecimento da pluralidade cultural e pelas garantias às minorias indígenas.

O atual governo federal tem ignorado esse histórico de avanços, fragilizando as instituições antes dedicadas à causa indígena, se recusando abertamente a ouvir ou reconhecer as demandas dos povos originários, abrindo caminhos informais para a invasão de terras, contribuindo para a propagação de estereótipos equivocados sobre estas populações. Tudo isso com um propósito bem claro: abrir caminho para a exploração econômica dos seus territórios, algo que compromete não apenas o nosso território, mas a vida no planeta.

Foto de Ubiratan Surui


Movimento Indígena no Brasil

O Movimento Indígena surge como uma resposta dos povos indígenas à lógica da destruição orquestrada pelo governo militar e que respondia a uma exigência do modelo econômico vigente, que tinha como base o desenvolvimento a todo custo. Na década de 1980, num momento histórico marcado pela eclosão dos movimentos sociais pós-ditadura, jovens estudantes indígenas atuaram de forma a estimular a organização e atuação política das comunidades em defesa de seus valores.

Recebendo o apoio tático da Igreja Católica (sobretudo por meio do Conselho Indigenista Missionário – CIMI, órgão da CNBB, criado em 1972 – contribuindo para a organização dos primeiros encontros de lideranças indígenas no país, ainda na década de 1970), o movimento se constrói a partir de uma consciência pan-indígena, congregando, aos poucos, o apoio de outras categorias sociais (intelectuais, artistas, profissionais liberais, trabalhadores rurais sem terra etc.). Talvez pela primeira vez na história do país, a diversidade cultural e linguística é tomada como uma demanda real – e não mais como dimensão estética da identidade brasileira.

Grupo de indígenas com roupas e o corpo pintados de vermelho caminha numa rua em manifestação.
Foto de Edgar Kanayko


O Movimento Indígena ganhou fôlego nas últimas décadas, sobretudo pela atuação organizada de lideranças indígenas de todo o território nacional, mas também pela via da pesquisa nas universidades. Ambas as frentes têm ampliado sua visibilidade e garantindo conquistas – como é o caso da lei 11.645, de 2008, que introduz o estudo na história e cultura indígenas brasileiras no currículo das escolas. A atuação organizada dos povos indígenas é um instrumento legítimo na defesa dos seus direitos, estruturada em processo de autoformação e servindo também para mudar o olhar da sociedade e do Estado sobre estas populações.

Pode-se dizer, assim, que o Movimento Indígena no Brasil tem em sua base uma proposta de educação que se divide em dois caminhos complementares: a formação de quadros para sua continuidade e a formação da sociedade brasileira para o reconhecimento da diversidade e das causas indígenas.

As mulheres e o movimento indígena

O movimento indígena vem se fortalecendo ano após ano. E é crescente o número de organizações indígenas de atuação local, regional e nacional. Estas organizações passaram a ser protagonistas nos processos de luta pela conquista e garantia dos direitos dos povos indígenas e na execução de projetos comunitários de geração de renda, gestão territorial, manejo florestal, agroextrativismo, educação, saúde. 

Atualmente existem mais de mil organizações indígenas. Desse total, cerca de 9% são organizações de mulheres. 

Mulheres indígenas em todo o país têm criado e gerido organizações ou departamentos em entidades históricas do movimento indígena, como a Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab), a Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (Foirn), o Conselho Indígena de Roraima (CIR), a Articulação dos Povos Indígenas do Xingu (Atix), entre outras. Esses números tendem a crescer, pois o protagonismo das mulheres indígenas é cada vez maior.

Mulher indígena com corpo pintado em manifestação
Foto de Edgar Kanayko

O Covid19 e as populações indígenas

A exposição das populações indígenas a doenças do “mundo branco” foi, ao longo da história do Brasil, uma forma de genocídio. O Covid19 se alastrou entre as populações indígenas brasileiras. A maioria das aldeias já foram afetadas pela doença. Quase 50 mil pessoas infectadas e mais de mil mortes. Diante desse cenário, o governo federal foi não apenas omisso, mas também contribuiu para o alastramento da epidemia nas aldeias. Garimpeiros, grileiros, agentes de saúde e a busca por auxílios emergenciais na cidade (devido aos cortes e à falta de assistência por parte do governo e das instituições responsáveis, como a SESAI e a FUNAI) foram os principais vetores de contaminação. 

Foto de Ubiratan Surui


A primeira onda de Covid19 afetou principalmente idosos. Por isso o seu efeito nas comunidades indígenas foi muito além do luto de familiares e amigos. O valor dos idosos nas aldeias é inestimável. São conselheiros, sábios, e têm um papel fundamental na formação dos jovens. A cada morte, caíam verdadeiros monumentos de memória. Nas palavras da liderança indígena Célia Xakriabá, “mortes indígenas não são apenas números, são corpos com memórias, histórias e vozes coletivas. A cada Indígena que se vai é uma voz que deixa de entoar o canto. É uma mão que deixa de bater o maracá. Do luto à luta. Não é somente número, cada corpo Indígena tem uma encantaria ancestral. Com cada Indígena morto, morre parte da nossa história coletiva). 

“Enterrar um parente pelo genocídio em massa é enterrar mais um corpo que luta por direito. Cada Indígena derrubado é uma árvore ameaçada”.

Célia Xakriabá – professora ativista indígena do povo XAKRIABÁ

Apesar da falta de apoio governamental, muitas aldeias têm conseguido controlar a circulação do vírus através de medidas de isolamento rígidas. Mas o perigo segue à espreita, dada a situação de vulnerabilidade da maioria destas comunidades.

Se você quiser saber mais sobre o impacto do Covid-19 nas aldeias indígenas, acesse o site do Instituto Sócio-Ambiental (ISA), da Secretaria Especial de Saúde Indígena (SESAI) e da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB).

Então não forme opinião sobre questões que incluem povos indígenas sem antes ouvir algumas de suas vozes. Somos, todes, em alguma medida, brasileires. E o Brasil é indígena. Fure a sua bolha. Amplie seu olhar. Aqueça seu coração.


Break the bubble.
Diva. United by difference.

Marcelo Téo é co-fundador da Diva Inclusive Solutions, pesquisador, educador, produtor de conteúdo, músico e pai. Suas pesquisas dentro e fora do âmbito acadêmico estão voltadas para o consumo narrativo e o papel da diversidade de histórias no desenvolvimento da empatia.