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No primeiro artigo sobre os povos originários, falamos sobre suas lutas, sobre o movimento indígena em prol dos direitos das populações originárias, seus desafios, sobre a presença de lideranças femininas e até sobre o impacto da pandemia nas comunidades. Decidimos escrever, nesta segunda parte, sobre questões que nos ajudam a entender melhor alguns pontos comuns entre as culturas indígenas, como educação, epistemicídio, produção artística e audiovisual, ancestralidade e oralidade. Trouxemos depoimentos de artistas, cineastas, para transcender o discurso sobre os povos indígenas e ouvir suas próprias vozes, pois entendemos que a representatividade e o protagonismo são essenciais à construção de um debate plural.
Silêncios
Junto com a crescente onda de debates sobre racismo e diversidade, fruto de demandas populares, cresce também a presença de pessoas indígenas em espaços públicos de debate. Contudo, a representatividade indígena ainda é bastante deficitária. Tomemos como exemplo a plataforma de streaming de vídeo Netflix. Desde 2018 a plataforma vem investindo pesado em diversidade, privilegiando temáticas inclusivas, como racismo, capacitismo, sexismo, homofobia etc. Mas a temática indígena ainda é quase completamente ausente. Dos mais de 30 mil episódios de séries disponíveis para assistir, apenas uma série – Fronteira Verde – com apenas uma temporada, tem protagonismo indígena.
Essa ausência das vozes indígenas também acontece na publicidade e no cinema mainstream. Algo que é difícil de entender, pois existem pelo menos dois motivos urgentes para multiplicar a presença dos povos originários nos grandes meios de circulação narrativa, nos debates públicos e na agenda de políticos realmente preocupados com o futuro do país. O primeiro é a ameaça à Amazônia e à vida de seus habitantes originais perpetrada pelos barões do agronegócio com a chancela do atual governo. O segundo é a necessidade de aprendermos com estas populações caminhos para, como advertiu Ailton Krenak, “evitar o fim do mundo”.
O desequilíbrio de histórias que afeta essas populações inclui não apenas a ausência de narrativas nos grandes canais de circulação, mas também a presença de narrativas estereotipadas, fake news e outras estratégias dedicadas a invalidar as as vozes e as pautas dos povos indígenas diante da sociedade. Um ponto de partida para lidar com esse problema é a escola.
Educação e povos indígenas
Segundo a pesquisadora Luisa T. Wittmann, quando se pensa em educação e povos indígenas, “há pelo menos três situações diferentes que devemos atentar: 1) educação indígena; 2) educação escolar indígena; e 3) a temática indígena ensinada em escolas não-indígenas”.
A educação indígena é a educação tradicional, ancorada na cultura de cada um dos povos originários do mundo. O ensino guarani, por exemplo, se dá em espaços como a Opy (casa de reza), o coral das crianças e a escola, mais recente em suas comunidades. A educação escolar indígena é a escola nas aldeias que valoriza a cultura ancestral. Trata-se, portanto, de uma educação específica, diferenciada, intercultural, bi ou multilíngue e comunitária, garantida pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional de 1996. É árdua a luta para que de fato seja atendida a necessidade contemporânea de uma escola que equilibre os conhecimentos indígenas e do branco através de um currículo diferenciado, que utilize materiais produzidos e aplicados por professores indígenas, num calendário que respeite o ritmo e a vida da aldeia.
A temática indígena ensinada em escolas não-indígenas ganhou impulso com a Lei 11.645/08, que tornou obrigatório o ensino de história e cultura indígena em todo âmbito e currículo escolar brasileiro. Este dispositivo legal incluiu a temática indígena, ampliando a Lei 10.639/03 que havia determinado a inserção no ensino fundamental e médio, público e privado, do ensino de história e cultura afro-brasileira.
As leis citadas visam um objetivo maior: combater o racismo direcionado às populações de origem africana e indígena no país. Segundo Luisa T. Wittmann, para que isso aconteça de fato, é necessário repensar as concepções eurocêntricas do currículo escolar através de uma pedagogia inclusiva que valorize a diversidade brasileira.
No caso específico da temática indígena, “é fundamental que o ensino possibilite a compreensão da diversidade dos povos, do valor das culturas e dos conhecimentos delas provenientes, desfazendo estereótipos, reconhecendo a complexidade e o caráter dinâmico das culturas dos povos indígenas, que seguem vivos e crescendo. Mesmo depois de mais de cinco séculos de exclusão, perseguição e violência”, argumenta a pesquisadora.
Educar para a vida é respeitar a pluralidade de caminhos que ela pode tomar.
Dica de leitura: WITTMANN, Luisa T (org.). Ensino de História Indígena. São Paulo: Autêntica, 2015.
Ancestralidade
Para Daniel Munduruku, escritor e professor da etnia indígena Munduruku, a educação indígena transcende a educação das mentes, passando também pelos corpos, pelos sentidos, e pelo espírito. Envolve, portanto, a ancestralidade.
Educar é “preparar o corpo para sentir, apreender e sonhar. Pode ser também para sonhar, apreender e sentir. Ou ainda, apreender, sentir e sonhar. Não importa. É um mesmo movimento. É o movimento da Circularidade, do Encontro, do Sentido”.
Entre as populações indígenas é através da ancestralidade que se dão os processos de constituição identitária, conectando os indivíduos às suas comunidades. Ela é a origem comum, algo que dá sentido de pertencimento. O saber ancestral dos povos indígenas desafia a noção ocidental de espaço-tempo, propondo outras formas de relação entre o passado, o presente e o futuro.
Não é a materialidade da história, mas uma experiência fluida que sobrevive nos corpos, como um saber que não pode ser adquirido nos livros. O saber ancestral funda uma nova relação em que viver o passado no presente é uma abertura para o futuro. É uma busca que dá sentido à vida do aqui e do agora e que se espraia nas ações que irão construir o futuro.
Esse elemento fundamental da cosmologia indígena contrasta diretamente com o modelo hegemônico de desenvolvimento. O saber ancestral não constrói uma visão unilinear do futuro. Ele é um constante e eterno retorno ao passado que mantém os indivíduos conectados entre si e com seu território. Na ética da mercadoria, a natureza é fonte a ser explorada. Na da ancestralidade, ela é parte de tudo… como nós.
Dica de leitura: MUNDURUKU, Daniel. O caráter educativo do movimento indígena brasileiro (1970-1990). São Paulo, Paulinas, 2012.
Epistemicídio
Para compreender a violência contra os Povos Indígenas no Brasil, é preciso entender um conjunto de variáveis, que vão da territorialidade e disputas por terra, à repressão cultural, que impede a manifestação livre a partir dos pressupostos de suas próprias culturas. Uma das chaves para compreender essa questão é pensar a violência que se configura através do “epistemicídio”, ou seja, pela tentativa de eliminação das vozes, práticas e saberes indígenas.
Na contemporaneidade, a violência é institucional, seja na ação do Estado brasileiro reduzindo direitos como a não demarcação dos territórios e a implantação de obras desenvolvimentistas que afetam essas comunidades, seja na omissão, permitindo assassinatos e invasão das terras indígenas. Mas repercute em toda a estrutura social, gerando marcadores de opressão que tentam impedir o acesso e a participação dos povos e indivíduos indígenas na construção de soluções para os problemas sociais que afetam a todos nós.
É importante entendermos que a presença indígena no campo do conhecimento não pode ser reduzida a discursos sobre eles, produzidos por sujeitos de fora de suas comunidades. As vozes dos povos originários têm ecoado dentro e fora das universidades. E basta acompanhar para entender que os povos indígenas têm contribuições únicas e necessárias para a construção de uma sociedade mais justa, sustentável e diversa.
A performance da oralidade
A oralidade é a prática de uso da língua natural por meio da produção sonora, articulada aos gestos (movimentos do corpo, expressões faciais, sotaques, entonações, ritmo etc). Quando se fala em povos de tradição oral, contudo, faz-se referência a tradições culturais que prescindem da linguagem escrita. Nestes casos, a oralidade tem o predomínio, mas está sempre sustentada por diferentes formas de escritura que guardam em si a essência e a materialidade da própria oralidade.
A renúncia da escrita ocidental não se dá, na grande parte dos casos, pelo desconhecimento dos códigos, mas pela incapacidade do sistema de traduzir performances que só podem ser contempladas pela oralidade.
Os silêncios da escrita
No Ocidente, a escrita tem sido usada também para garantir a hegemonia histórica de um modelo civilizacional. E a História aceitou, muitas vezes, os silêncios de tradições orais nas documentações. Povos sem documentos escritos seriam, assim, povos sem história.
Tradições historiográficas mais sensíveis à oralidade têm explorado tais silêncios, seja para questionar a história dos que se proclamam vencedores, seja para reconhecer o valor das tradições orais na produção de sentidos no passado e no presente.
O fato é que todes temos história. E, mais do que isso, todes temos o direito de contá-la segundo nossos próprios modelos narrativos. Os passados das populações indígenas não foram perdidos no caminho. Estão vivos e vibrantes.
O cinema e os povos indígenas
DEPOIMENTO DO CINEASTA GUARANI ARIEL ORTEGA
O audiovisual é uma forma de registro, de memória. A transmissão de conhecimentos entre nós se deu, ao longo da história, através da escuta e da memória, desde criança. Mas muitas dessas coisas, como em qualquer outra cultura, também vão se perdendo. Especialmente hoje em dia, quando, na maioria das comunidades, as crianças já não ficam mais à beira da fogueira ouvindo histórias da nossa cultura, sobre o nosso jeito de ser guarani.
A tecnologia é uma realidade dentro das aldeias: celulares, redes sociais, computadores, televisão. Nesse cenário, o cinema tem um papel muito importante. Pois não nos vemos nas programações disponíveis. E quando nos vemos, não nos reconhecemos. Produzirmos materiais nossos, filmados dentro da aldeia, é algo fundamental. Tudo que fazemos é mostrado dentro da aldeia. Também assistimos os trabalhos de outras aldeias para saber como a nossa aldeia é diferente, quais são as dificuldades, os problemas de território. Isso vai gerando discussões e engajamento dentro das aldeias.
Enfim, o audiovisual é uma ferramenta política, sobretudo para os jovens, mas também para as próprias lideranças. Serve ainda, para nos ajudar a enxergar problemas internos que só conseguimos perceber quando vemos o filme. Como se acordássemos ao nos vermos na tela.
O filme Duas aldeias, uma caminhada foi feito para mostrar para fora, como forma de combater o preconceito que nos afeta cotidianamente. Nós, Guarani sempre estivemos por aqui, mas as pessoas não conhecem a história de São Miguel das Missões, nem mesmo que as ruínas são construções feitas por indígenas. Isso me incomodou muito. A mim e ao meu povo. Eu queria encontrar uma forma de contar melhor essa história.
Poderia também fazer uma animação sobre mitologia, por exemplo. Algo para ser visto nas escolas. Para nós, a mitologia é muito importante. Ela se confunde com a nossa história. Eu também quero produzir algo sobre nosso conhecimento da medicina, da natureza, dos saberes Guarani. Nesse mundo de consumo desenfreado, não há limites na relação com a natureza. Acho que é importante falarmos sobre nosso olhar, nosso intuito de proteger a terra. Estamos todos no mesmo barco. E os povos indígenas têm uma contribuição enorme para construir uma sociedade melhor. Vejo o cinema como uma ferramenta para oferecer o que temos ao mundo.
Dica de leitura: Entrevista com Ariel Ortega, cineasta Mbyá-Guarani. In: Fronteiras: Revista Catarinense de História. Dossiê História Indígena e estudos decoloniais, N. 31, 2018/01. Acesse aqui.
A arte que recria o mundo
DEPOIMENTO DO ARTISTA MAKUXI JAIDER ESBELL*
Se somos indígenas podemos percorrer os caminhos de nossos antecessores e se estamos, a priori, imersos no “mundo dos brancos” é pela via da educação que devemos contra-atacar. (…) Para essa batalha bem nos servem os propósitos das artes. (…) Suas diversas possibilidades, quando bem aplicadas, podem nos dar a chance de galgar postos antes impossíveis, visto que os caminhos para ir aos grandes palcos onde se modulam as referências de pensamento influente ainda são um desafio grande. Não conseguiremos, sem a força da arte, pois uma autonarrativa ainda é privilégio para poucos e não fazemos parte desse universo por não atendermos aos critérios da meritocracia.
Se somos um povo constituído com tudo o que nos garante navegar no universo, estamos então na grande batalha para compor com a polidiversidade, vivos e presentes e não meramente elencados como sociedade ou civilizações que não mais existem. Se mesmo por poucos meios influenciamos outras sociedades, cultivamos em alguma medida a abertura de horizontes. Quando foi exatamente que deixamos de ser nós próprios e passamos a ser como os outros, os outros ou dos outros?
Se ainda somos um povo constituído, digo eu, ciente de que sou parte de uma nação viva, os Makuxi, eu devo dizer que sobre nós: o processo de colonização não conseguiu ainda se fazer plenamente. A nossa maneira de resistir e continuar interagindo com os mundos deve servir de bom exemplo de como subverter os efeitos da supremacia de chegou com o invasor, o unilateralismo imperial e monoteísta cristão.
* Originalmente publicado em MORTARI, Cláudia; WITTMANN, Luisa T. (orgs). Narrativas Insurgentes: decolonizando conhecimentos e entrelaçando mundos. Florianópolis, SC: Rocha Gráfica e Editora, 2020. Acesse o livro aqui.
A luta por um mundo plural é de todes. E a causa indígena é parte essencial dela. Não podemos resumir os debates sobre diversidade a algumas comunidades minorizadas. Não se pode incluir excluindo.
Os povos indígenas carregam boa parte da diversidade cultural brasileira: muitas línguas, culturas e saberes que oferecem respostas aos grandes questionamentos que a civilização ocidental têm elaborado sobre ela mesma.
A proteção ambiental é uma luta de todes. E a causa indígena é, também, parte essencial dela. A demarcação de terras e o direito à vida dessas populações são parte importante das demandas necessárias à preservação da Amazônia e outras áreas de floresta espalhadas pelo Brasil.
Nosso país é um celeiro de diversidade, ambiental, linguística, cultural, étnica. O reconhecimento do valor das culturas indígenas é um passo fundamental para que nosso país volte, pouco a pouco, a ser percebido como tal.
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Break the bubble.
Diva. United by difference.
Marcelo Téo é co-fundador da Diva Inclusive Solutions, pesquisador, educador, produtor de conteúdo, músico e pai. Suas pesquisas dentro e fora do âmbito acadêmico estão voltadas para o consumo narrativo e o papel da diversidade de histórias no desenvolvimento da empatia.